Tudo começou com um merceeiro e um francês, que fugiu da Segunda Guerra Mundial. Porém, para entendermos a verdadeira história por detrás da criação dos famosos rebuçados Dr. Bayard, precisamos de recuar no tempo, mais precisamente até 1914. Foi nesse ano que nasceu Álvaro Matias, em Vale da Mula, no concelho da Guarda — este, é o nome do fundador da marca, que já conta com três gerações e um legado mundial.
Aos 16 anos, Álvaro partiu para Lisboa, à procura de melhores condições de vida e novas oportunidades, “como tantas pessoas da altura”, conta o neto, Daniel Matias, 39 anos, à NiA. Inicialmente, esteve numa mercearia de bairro. Num dia, igual a tantos outros, conheceu o Dr. Bayard, um refugiado da Segunda Guerra Mundial que voltou com pouco mais do que as roupas que tinha no corpo. Mal imaginava Álvaro que naqueles bolsos estava, literalmente, a receita do seu futuro.
Como fugiu do conflito, veio com muito pouco dinheiro e, com o passar do tempo, o poder de compra foi diminuindo ainda mais. Com uma amizade a ser construída diariamente, Álvaro ajudou o Dr. Bayard e a sua família a sobreviver, assegurando a alimentação, numa altura em que tudo era racionado e contado. Era também o seu guia privado em passeios pela capital e, em troca, recebia aulas de francês.
Quando chegou a altura de partir novamente para França, em 1944, Álvaro pagou o bilhete de comboio ao ex-combatente. Como forma de agradecimento, o Dr. Bayard partilhou um tesouro escondido e valioso, entregue numa lata de metal, gravada com a imagem de um senhor a tossir: estava, num papel, a receita dos rebuçados que fabricava artesanalmente no seu país, sem se saber se era essa a sua profissão.
Lá estavam escritos todos os ingredientes — incluindo o mistério e segredo mais bem guardado da marca —, mas sem as quantidades. E nunca mais ouviram falar do Dr. Bayard. A partir daqui começa, então, uma nova jornada. Álvaro, em conjunto com a mulher, Mariana, nas quatro paredes de casa iniciam os primeiros testes da receita que lhe tinha sido deixada. Depois de muitas tentativas, chegaram, finalmente, ao ponto de rebuçado. E estava encontrada a fórmula do sucesso.

“Desde que acertaram, em 1949, a receita continua inalterada. Quando o meu avô começou, eram todos feitos de modo artesanal. A minha avó fazia-os numa panela de cobre, que tinha na cozinha, formava-se a massa, estendia-se na bancada de mármore e, depois de arrefecidos, o meu pai e tia, ainda miúdos, ajudavam a embrulhar os rebuçados. Eram colocados num cestinho de verga e o meu avô ia vender nos cinemas, mercearias, cafés e farmácias”, recorda Daniel, que é também diretor de marketing e comunicação da marca.
O propósito destes rebuçados consistia em combater a tosse e o mal-estar peitoral. E a verdade é que a venda ambulante começou a ser um sucesso cada vez maior. Assim, já a viverem na Amadora, chegou a altura de montar “uma pequena linha de montagem artesanal na marquise” de sua casa que, posteriormente, se expandiu para o quintal.
Nesse momento veio também “a primeira máquina” de sempre, uma cozedora, que era uma “espécie de panela para cozer a massa e que ajudava a fazer mais rebuçados”. O investimento cada vez maior, com a produção a ter de aumentar também, foi necessário e, assim, em 1969, começa o processo de industrialização e a fábrica da Dr. Bayard, como a conhecemos hoje, localizada na Rua Gomes Freire.
“O meu avô decidiu construir o prédio onde continua até hoje. A ideia era fazer uma cave e rés-do-chão, com a parte da habitação por cima. Durante esse tempo, o meu pai foi uma grande ajuda, principalmente na idealização do processo como está montado. Visitaram várias feiras internacionais, para conhecer produtores e tipos de máquina. Foi ele [o pai] o responsável pela industrialização dos rebuçados e da montagem de produção como é atualmente”, confessa Daniel.
O mecanismo das memórias
O cheiro inconfundível a rebuçado Dr. Bayard é reconhecido em qualquer canto. E é ainda mais evidente assim que entramos na zona onde a magia acontece. O odor tornou-se um símbolo da marca, mas também uma recordação presente na memória de cada um de nós. “Se falarmos do rebuçado em si, é feito com açúcar, mel, glucose e plantas medicinais, que é aí que está o segredo. Mas há todo um lado emocional nisto tudo”, reforça o diretor de marketing.
E acrescenta: “São ligações afetivas das pessoas que estão embrulhadas num papel de rebuçado. Muitas vezes, estamos a falar de alguém comer um rebuçado e lembrar-se dos avós e dos momentos passados com eles. Tem esta componente muito forte e um imaginário tão grande. Acredito que essas emoções que transmitem são mais decisivas na compra do que propriamente a dor de garganta. É uma viagem no tempo muito nostálgica”.
A própria marca é, no fundo, um legado que transmite esse lado sentimental do produto. Depois de Álvaro, José tomou conta do negócio durante toda a vida. Agora, quer passar para os filhos, uma vez que o irmão de Daniel, André Matias, 41 anos, também está na equipa há cerca de 20, e trata da parte administrativa, nomeadamente da gestão de stock, encomendas, matérias-primas e faturação.
Antes de entrar para o grupo da família, Daniel quis experimentar outras áreas. Trabalhou como técnico de som, ligado ao ramo da música e, em 2010, emigra para Berlim, onde esteve a trabalhar com vídeo, até 2015. Nessa altura, e depois do “distanciamento”, percebe que “o que tem em casa é especial” e começa a trabalhar na Dr. Bayard para “honrar o legado”. Fez ainda alguns cursos de marketing e e-commerce, e é responsável pela dinamização da marca nesse sentido.

Ao todo, na fábrica, trabalham cerca de 14 pessoas, entre a parte de produção — onde só estão mulheres — e administrativa. A sala onde são feitos os rebuçados é dividida em duas partes: uma onde é tratada a massa e outra onde é feito o embrulhamento. Na casa, o produto é finalizado, colocado em paletes e escoado, pela mesma porta onde entra a matéria-prima. Toda esta interligação foi idealizada por José, que herdou a posição do pai em 2007 e que, segundo Daniel, foi o “grande responsável pela industrialização e salto que a marca deu”.
Para a produção dos rebuçados, existem 12 máquinas. Numa primeira fase, os ingredientes são pesados, numa “espécie de balança”, e misturados com água, até ser formada uma calda para a cozedura, até atingir o ponto de rebuçado. Depois, a massa passa para outra máquina, onde é amassada e dobrada várias vezes, para ficar mais homogénea, e onde é arrefecida. Em seguida, vai para uma máquina de moldar, que faz uma espécie de rolo, que vai afunilando até ficar “da grossura de um dedo”.
Esse cordão é cortado e carimbado, com formato e logótipo, e passam por uma passadeira com ar condicionado para ficarem duros e, de seguida, serem embrulhados individualmente. Noutra fase, passam para outra balança, onde são pesados em embalagens de 100 e 200 gramas. Caem dentro de uma outra máquina, onde estão os pacotes, sendo distribuídos através de um tubo. Para terminar, o embalamento é feito na cave, sendo considerada uma “produção circular”. Há ainda embalagens de 3,5 quilogramas, embalados individualmente.
A inovação que acompanha a história
Com a expansão da marca, desde que começou o processo de industrialização, a produção tem vindo a aumentar de ano para ano. Ao todo, são produzidos cerca de 1 milhão de rebuçados por dia. Sendo um produto “sazonal”, como refere Daniel, tendem a manter o “equilíbrio” para entregar sempre “produtos frescos” ao cliente. Com o intuito de reforçar a divulgação da Dr. Bayard, em 2015, surge também a loja online, com vários produtos de merchandising, bem como a possibilidade de comprar os rebuçados através do site. Assim, chegam “a todo o público”, sem existir uma “quebra geracional, entre avós e netos”.
Em 2018, o rapper português Mike El Nite grava o videoclipe da música “Dr. Bayard”, usando a própria fábrica como cenário. O trabalho foi um sucesso e já conta com mais de 5 milhões de visualizações no YouTube.
Um ano mais tarde, em 2019, a propósito do 70.º aniversário, o livro infantil “um milhão de rebuçados”, conta toda a história da marca e também da amizade entre Álvaro e o Dr. Bayard, que estão por detrás desta invenção de sucesso, que, curiosamente, tem a fábrica numa zona residencial e não fora da cidade da Amadora, numa zona industrial, como a maioria das unidades industriais.
No meio de tantos anos de trabalho e dedicação, uma coisa é certa: pela vontade dos netos, a Dr. Bayard vai continuar. “Se o meu avô aqui estivesse, em termos práticos e visuais, está tudo semelhante ao que se lembrava, das máquinas às pessoas. Ainda assim, acho que não ia ter noção da projeção da marca. O sentimento de orgulho ia prevalecer por saber que continuámos o legado, com carinho, interesse, cuidado e entrega, não só pelo projeto, mas também pela Amadora”, conclui.
Carregue na galeria para conhecer a fábrica da Dr. Bayard, instalada numa das ruas da Amadora.