“Se as pessoas vêm aqui com pressa para comer rapidamente, mais vale darem meia-volta e ir a outro lado”. A frase é cortante, mas Ana Lee di-la com todas as letras. “Todos pratos que eu tenho neste momento aqui na lista são feitos ao momento. Não temos pratos do dia, que basta pôr no micro-ondas e aquecer. As coisas em Moçambique são feitas com carinho e com amor. E sem pressas, que já não temos idade para isso”, acrescenta à New in Amadora.
Ana tem 60 anos e o marido Fernando, 63. São os donos do Bula Bula, um restaurante de comida moçambicana que está há quatro anos, no Casal de São Brás, na Amadora. O casal aprendeu a relativizar o tempo.
“Somos a terceira geração de uma família sempre ligada à restauração e que por duas vezes perdeu tudo”, conta.
Juntos na vida há 40 anos e com três filhos — um homem, com 38, que está com eles no restaurante, e duas mulheres, uma de 30 e outra de 27, que seguiram outros caminhos profissionais —, Ana e Fernando têm descendência macaense, nasceram ambos em Moçambique e são portugueses, porque Macau só passou para administração chinesa em 1999.
“Nós somos o resultado dessas três culturas”, diz, despachada, num português perfeito, embora o sotaque e as feições deixem antever as origens. “A família do meu marido sempre esteve ligada à restauração. A nossa história nunca foi fácil. Crescemos em Moçambique, o meu pai era arquiteto e nós com o 25 de Abril perdemos tudo: as empresas dos meus avós, o prédio, a casa, tudo, tudo, tudo. Ficámos a zeros. Como se diz por aqui, viemos com uma mão à frente e outra atrás”, revela, com um sentido prático e uma dureza nas palavras que impressiona.
Não gosta de olhar para trás. O caminho é em frente. “É para fazer, é para fazer. É para reconstruir, é para reconstruir”.
E assim foi. Recomeçando do zero, fizeram sucesso com um restaurante cantonês em Alcântara. “Era um restaurante grande, com muitos empregados e muitos lugares sentados”, recorda. Quando tudo parecia alinhado, chegamos a 2020, ano da Covid-19. “A maldita pandemia levou-nos tudo outra vez. Perdemos tudo”, repete, como que tentando mentalizar-se que, pela segunda vez, tinham de voltar a renascer.
Foi mesmo isso que aconteceu. “Perdermos tudo e começar do zero com esta idade não é fácil. Já pesa um bocadinho”, diz. Nesse cenário, foram mais modestos nos objetivos. “Não quisemos fazer um restaurante cantonês ou chinês, preferimos fazer um moçambicano, que é a nossa casa. Arranjámos este espaço aqui na Amadora, e abrimos o Bula Bula, expressão moçambicana que significa “conversa fiada”. “Esta casa é mais pequena, que nós já não estamos para grandes correrias, estamos cansados, sabe?”.
“Mais uns anos e reformamo-nos”
O negócio vai andando, obrigado. “Nem bem, nem mal. Há dias melhores do que outros, mas vai dando para as encomendas. Nós também já não temos saúde para muito mais. Mais uns anos e reformamo-nos e vamos para casa, que bem merecemos”. O futuro do Bula Bula é nebuloso.
“Depois de nós, isto acaba porque a minha filha não quer seguir isto. Diz que dá muito trabalho, que é uma vida de escrava. E eu não a censuro. Ela está à procura de outras áreas para ir estudar. Isto é muito pesado. Nesta área, ou se fazem as coisas com paixão, ou então não vale a pena. Se é só por dinheiro, não pode ser”, enfatiza.

Na cozinha do Bula Bula está hoje quase sempre Fernando. “Eu fico mais aqui nas mesas e no contacto com os clientes. Já passei muitas horas na cozinha, já não tenho saúde. E o meu marido cozinha muito bem, aprendeu com a mãe aos sete anos”, diz, com orgulho.
Apesar de descendente de macaenses, Ana Lee, uma de nove filhos — todos nascidos já em Moçambique, tal como os avós e os pais — conhece mal o território. “Agora somos só oito irmãos, mas éramos nove. Eles estão espalhados pelo mudo todo”, conta. E vai enumerando devagar, como que preocupada em não se esquecer de qualquer recanto: “Brasil… América… Suíça… Países Baixos… acho que é isto… ah, claro, e Macau”.
Estar casada há 40 anos com o mesmo homem com quem trabalha não é “pera doce”, reconhece. “Conheci o meu marido nas festas moçambicanas: a gente juntava-se muito. Ele é que me deitou o olho. Era mais insistente”, diz, com uma gargalhada.
No fundo, é precisa “muita paciência”. “Trabalhamos juntos, vivemos juntos. Tenho de ter muita paciência, Mas, às vezes, a paciência esgota-se. A minha e a dele”. Mas lá vão seguindo juntos. “Quem já passou por tanto, também passa por estas”, diz à NiA.
Sem preços por causa das invejas
Ana Lee orgulha-se de dizer que no seu restaurante “só há boa comida moçambicana”. “Neste momento, a maior parte dos meus clientes são moçambicanos. Quem nasceu lá, quem foi de cá para lá e conhece a comida, aqueles que foram para lá trabalhar e voltaram. Trabalho para todos eles. Porque eles sabem, porque eles conhecem, sabem apreciar a boa comida moçambicana, não se deixam enganar facilmente”, explica.
Ao jantar, o Bula Bula só serve por marcações, através do número de telefone 918 989 997. “Se não tiver grupos marcados, não me compensa”. “Não me compensa abrir o restaurante para fazer dois ou três jantares. Para já, porque é tudo feito ao momento, depois porque a comida moçambicana, os ingredientes não são baratos e só se rentabiliza uma comida se for feita para grupos”, acrescenta.
A matapa de camarão com couve, o caril de caranguejo de casca mole de Moçambique, os camarões à Laurentina, à moda de Lourenço Marques [agora, Maputo], que é a terra do chef, o caril de camarão descascado e a moqueca de camarão (“mas é a de Moçambique, porque no Brasil também fazem, mas é diferente”) são os pratos-estrela do restaurante.
“Fazemos com picante para quem gosta de picante e sem picante para quem não gosta de picante. Quem não come marisco, tem um bife à moçambicana com batata frita e ovo estrelado”, afirma. Deixa, porém, o aviso aos mais incautos. “Mas não é um bife a martelo, é um bife à maneira, bem feito”.
Ana explica que há “vários pratos africanos que já não estão na lista”, mas que a pedido também faz. “Dão-me muito trabalho e a saúde já não o permite, mas que por encomenda, se for para um grupo, eu faço”. São pratos que não se podem fazer para uma pessoa, não compensa, só para grupos. Levam três a quatro dias para fazer”.
E aponta como exemplos “a cachupa rica, por exemplo, a moamba de galinha com funge”.
O que o cliente também não vai encontrar na lista são os preços. “Não gosto de preços. Há muitas invejas. As pessoas mandavam muitas bocas e então para evitar as bocas acabámos com os preços. Disse à minha filha para tirar os preços. Estava cansada de gente que não vem cá, que não conhece a minha comida, mas que adora denegrir o meu restaurante. Há gente muito maldosa”, justifica.
Então, mas sem preços, como é que as pessoas sabem o que escolher e o que vão gastar? A resposta é de uma simplicidade desarmante. “Perguntam-me, que eu respondo”. Ou aqui na casa, ou quando telefonam a reservar, dizem o que querem comer e nós fazemos logo o orçamento e as pessoas ficam a saber quanto vão pagar”.
Ao menos uma média de gasto por refeição, insistimos. Que não, não é possível. “Repare, tenho pratos a 30 euros, tenho outros a 25, uns a 15. Nas sobremesas, a bebinca é a mais cara e custa seis euros a fatia, depois, há sobremesas mais baratas, a três euritos. Portanto, tudo depende do que as pessoas escolhem”.
Fica, porém, um aviso: “A comida moçambicana não é para todas as carteiras. É para quem conhece e quem gosta. Mas quem gosta de comer boa comida moçambicana e caseira, é aqui que vem. Tenho clientes das Caldas da Rainha, da Ericeira, do Seixal, de Cascais, de Lisboa, de toda a parte. As pessoas vêm atrás da comida”.
Já agora, fique a saber que também não há multibanco. “Acabei com isso. Não trabalho com multibanco. Já fui escaldada com multibanco — as pessoas diziam que iam levantar dinheiro e depois não apareciam mais. Portanto, cortei o mal pela raiz”. Pronto, assunto encerrado.
Carregue na galeria para conhecer os sabores de Moçambique que pode provar no Bula Bula.