É bem no final da Avenida Elias Garcia — ou no início, em bom rigor, porque a avenida começa por ali — que está a pastelaria Scala. Mais uns metros e já pertencia a Benfica. Mas não, “é nossa”, diz com orgulho Luísa, cliente habitual “há mais de 20 anos”. “Venho cá todos os dias e sempre que posso fico aqui na esplanada, mas hoje está um pouco desagradável”, admite à New in Amadora. Não chove, pelo menos. Já não é mau.
Quando se entra na Scala, é impossível não perguntar: “Quem é o amante de ópera por estas bandas?” As referências ao Teatro alla Scala, de Milão, uma das casas de ópera mais famosas do mundo, inaugurada ainda no século XVIII, são muitas e não se ficam pelo nome.
Há uma fotografia grande do interior do teatro italiano junto à máquina de café. Do outro lado, sobre o balcão, um quadro bordado com a data 19 de setembro de 1975 — a fundação desta Scala — e com os dizeres:
“O Scala de Milão
É P’ra Divas ou Tenores
Artistas Grandes Cantores
Em Cenário de Ilusão…
Este Scala porém
Tem uma função bem diferente
Faz bolos para toda a gente
E p’ros artistas também”
José Pereira, 67 anos, o sócio principal do estabelecimento, na casa desde o seu início, não gosta de ópera, nem se lembra de qualquer ligação, nem dos fundadores nem dos que ainda lá estão, ao canto lírico. “Foi um nome como outro qualquer. Não tem qualquer explicação especial”, simplifica.
A longevidade da Scala, que toda a gente conhece na Amadora, essa sim, explica-se facilmente. “É a qualidade com que nós fazemos as coisas. Aqui não há inovações, nem modernices. Temos as mesmas coisas, os mesmos produtos, os nossos clientes sabem bem o que aqui encontram: a mesma qualidade, a mesma disponibilidade, o mesmo sorriso”, diz, José Pereira, acrescentando que a pastelaria “tem clientes que vêm aqui desde o início”.
“Temos senhoras que vêm religiosamente à mesma hora, em grupo, passar o tempo, comem e bebem a mesma coisa, sentam-se nas mesmas mesas e voltam no dia seguinte. Tratam-nos pelo nome e nós a elas também. Isso é encantador”, diz o responsável.
Aos 16 anos já fazia bolos
Há, no entanto, um segredo maior que justifica o sucesso da Scala. E está bem escondido. A New in Amadora descobriu-o, descendo dois lances de escadas da loja e mergulhando na cozinha e na fábrica de bolos. “Então é aqui que a magia acontece?”, perguntamos em voz alta, como que anunciando a nossa presença.
São 13h30 e as bancadas, umas horas antes seguramente cheias de farinhas, estão limpas, imaculadas. A amassadeira, também. O turno está a chegar ao fim, até porque “o pessoal entra de madrugada e sai às 14 horas”, avisara-nos minutos antes José Pereira.
António Barbosa tem 64 anos e é por ele que passa tudo o que está exposto no andar de cima: os queques, as bolas de Berlim, os palmiers, os mil folhas, os croissants, os jesuítas, os folhados de salsicha, os folhados de carne, as merendas e toda a sorte de miniaturas e bolos de aniversário. “Faço tudo, claro”, diz à NiA com um sorriso. É fácil descobrir-se-lhe uma ponta de orgulho. “Quando aqui cheguei já tinha feito os 15 anos e vim logo aqui para a fábrica, mas ainda como ajudante, está claro”, recorda.
Limpava tabuleiros, o forno e “fazia tudo aquilo que pediam e que um ajudante com aquela idade pode fazer”. Os tempos eram outros, ninguém falava em exploração de trabalho infantil. “Eu estava numa outra casa que o senhor Lopes também tinha na Rua de Santa Marta, em Lisboa. Depois, eles venderam essa casa e montaram esta aqui e eu vim no pacote”, brinca.
Natural de Vieira do Minho, no distrito de Braga, António, ou Tony, como é tratado na Scala, veio para Lisboa para trabalhar. “Eu queria era ganhar uns trocos, nem tinha ideia do que queria fazer quando crescesse. Mas depois, aos poucos, comecei a aprender esta arte e fui gostando”, recorda.
Aos 16 anos, recorda-se bem, teve o seu primeiro grande teste. E passou com distinção. “Eu era um garoto, mas fiquei a fazer as férias do chefe. Foi um bocadinho assustador, sobretudo porque ele só nos disse na véspera. E foi nesse dia que nos explicou algumas coisas: ‘Olha, fazem assim, depois assim’. Fiquei eu e mais um colega. Eu estava nervosíssimo, só quando vi no forno a massa folhada a crescer, é que descansei. Afinal, a coisa estava a correr bem”, recorda, entre gargalhadas.
António Barbosa, além de ser o artista dos bolos e pastéis, tornou-se, entretanto, sócio da Scala. “Tenho uma pequena quota, mas mesmo que não tivesse, sentiria isto na mesma como se fosse meu, porque estou aqui vai fazer 50 anos. O empenhamento seria sempre o mesmo”, diz à NiA.
O pasteleiro já perdeu a conta ao número de bolos que lhe passaram pelas mãos, mas garante que ainda não está “enjoado”. “Mas sou mais de salgados”, adverte o homem que entra todos os dias às 4h30 da manhã ao trabalho. “Nós abrimos a pastelaria às 6 horas e já temos de ter algumas coisas prontas no balcão para os clientes que chegam”.
Scala também serve almoços
Aberta todos os dias, a Scala não encerra para o famigerado “descanso do pessoal”. “Estamos abertos todos os dias e digo-lhe que essa é uma das razões para continuarmos a ter os nossos clientes fidelizados. Só no dia de Natal é que fechamos, de resto, as pessoas que aqui vêm sabem que estamos sempre abertos, não têm de procurar alternativas”, explica o gerente da Scala, José Pereira.
Além dos bolos e salgados, todos os dias há um prato diferente ao almoço (preços a partir dos 10€). “Olhe, hoje foi vitela estufada e amanhã é massada de peixe, por exemplo. Os preços variam um pouco, consoante o tipo de prato, mas é sempre por esses valores, 10€/11€”, diz, acrescentando que há ainda bitoques e omeletes, mas que não há serviço de lista.
Natural da Guarda, viveu em África entre os 12 e os 17 e depois veio para Lisboa. Mora “do outro lado da fronteira”, que é como quem diz do lado de lá da rotunda que separa as freguesias de Falagueira-Venda Nova (Amadora) e Benfica (Lisboa). Se pudesse trocar de vida, não trocava. “Adoro o que faço. Ainda não perdi o encanto. É evidente que o cliente já não é igual ao que era antigamente — é mais exigente, mas no mau sentido. Às vezes, até roça a má criação —, mas eu continuo a gostar muito disto, do contacto com os clientes, de conversar com as pessoas”.
Aos 67 anos, José não faz planos para a reforma. “Sei que não vou querer estar a trabalhar até cair para o lado, ou a andar a arrastar-me por aqui, mas ainda tenho força, saúde e motivação para continuar. Quando deixar de gostar, não venho”, diz.
Em final de conversa, o sócio-gerente confessa um pecado. “Gosto de tudo o que fazemos aqui. Infelizmente”, ri-se. Porquê infelizmente, perguntamos. “Porque tenho princípio de diabetes, que está diagnosticado, mas está controlado, mas às vezes é difícil resistir. Não como bolos aqui. São bons de mais. Se comesse um, ia tudo a eito”, afirma, divertido.
Nem abre uma exceção? “De tempos em tempos em tempos”. E qual é o bolo favorito? José refugia-se numa resposta clássica: “aqui são todos bons”. Insistimos. “Olhe, respondo-lhe assim: pastéis de nata são bons em todo o lado. Palmiers não há como os nossos. Está melhor assim?”
Carregue na galeria e conheça por dentro a Scala, uma das mais antigas pastelarias da Amadora.