O vermelho marca o dia. Há rosas, muitas rosas e outras flores, corações, mensagens de amor, ursinhos fofinhos. Sexta-feira, 14 de fevereiro, Dia dos Namorados. A pequena loja no início da Estrada da Falagueira tem um movimento pouco habitual. “Quero um arranjo bonito de rosas, por favor”, pede um cliente, pouco mais de 40 anos, gravata azul, fato impecável. Enquanto recebe o apoio da ajudante, Ana Cristina Vítor, 55 anos, abre os olhos grandes, sorri para um outro cliente: “Olá, como está? Então, o que vai ser hoje?”. O mesmo de sempre: as rosas são o prato do dia.
“O Dia dos Namorados, o Dia da Mãe e o Dia da Mulher são, sem dúvida, os dias mais fortes aqui. É quando temos mais clientes ao mesmo tempo, porque toda a gente quer levar uma flor para casa”, conta à NiA esta mulher que é florista há 35 anos, mas que já fez um pouco de tudo. “Não sei estar parada, estou sempre a arranjar coisas novas para fazer. Ainda mais, agora”, diz.
Deixemos as razões do “ainda mais, agora” para mais tarde e recuemos no tempo. Ana nunca quis ser florista, embora as flores sempre tenham feito parte da sua vida. “Cresci rodeada de flores. A minha mãe adorava plantas e flores, tinha sempre a varanda cheia e com ela tudo pegava, tudo ficava lindo [risos]. O meu pai sempre adorou horticultura: plantava ervas aromáticas, plantas, flores e essas coisas. Fui criada com a terra, com o campo e aquele cheiro característico”.
As memórias da Póvoa do Lanhoso, Braga, talvez justificam a têmpera desta mulher que não desiste perante as adversidades. Os pais já não estão vivos. “Morreram muito cedo: a minha mãe com 59 anos e o meu pai com 54” — mas ainda lá vive um irmão. “Vou lá muitas vezes vê-lo. E aos meus primos também”.
O surpreendente convite das flores
No início da década de 90, Ana Cristina trabalhava numa loja de desporto no centro comercial OK, hoje encerrado, mesmo em frente à Câmara Municipal da Amadora. Ao lado, havia uma florista. “Houve um dia que os donos da florista, que, entretanto, se tornaram meus compadres, que porque eu sou madrinha da filha, convidaram-me para ir trabalhar com eles”, recorda.
Ana ficou surpreendida. E hesitante. “Eu nunca tinha trabalhado com flores, não fazia ideia como se fazia. Só conhecia cravos e rosas, nada mais”, diz, entre gargalhadas. Explicou isso ao ex-patrão, mas nem por isso ele desistiu. Convenceram-na a experimentar ir fazer um ramo “para ver se tinha jeito”. Tinha. “E ele convidou-me para ficar”. O problema é que Ana estava farta de centros comerciais. “Queria sair dali para fora, queria ir para uma loja de rua, ver gente, ar puro”, disse-lhe.
Achou que a nega era suficiente, mas não foi, porque o antigo patrão tirou da cartola um coelho inesperado: “Vou dizer-te uma coisa que ninguém sabe ainda. Se aceitares vir trabalhar connosco, nós daqui a um mês vamos embora para outra loja. Prometo que já vais passar o Dia da Mulher em Lisboa”.
Perante tal promessa, a florista aceitou. O patrão cumpriu a palavra: um mês no centro comercial e, depois, Lisboa. “Acabei por ficar por lá nove anos”, afirma à NiA.
Negócio em causa própria
Ao fim de nove anos, volta para a Amadora para abrir o seu próprio negócio. “Era um quiosque, ali na Elias Garcia, em frente à Filarmónica [SFRAA], que já existia e era de um senhor que era florista, mas que me trespassou o negócio. Eu era cliente dele, depois ele decidiu fechar e ir para casa e perguntou-me se eu queria ficar com o quiosque”.
Ana não sabe dizer que não. Ficou com o quiosque e abriu, com o marido, o seu primeiro negócio. “Faz 24 anos no próximo dia 30 de março”, recorda. A memória está bem treinada. “Lembra-se quanto pagou pelo trespasse?”, perguntamos-lhe. Que sim, claro. “Quatro mil contos, ou seja, 20 mil euros à moeda atual. Era muito dinheiro”.
A florista foi muito feliz naquele quiosque, até porque o marido, que, entretanto, ficara desempregado, foi trabalhar com ela. “Acabámos por ficar também com uma loja junto à capela mortuária e foi sendo assim durante algum tempo”.
Com o passar dos anos, o quiosque foi-se deteriorando, e o zigue-zague constante entre as duas lojas desgastando o casal. “As flores são muito sensíveis e estar a comprar para os dois sítios era muito exigente. Acabei por fechar o quiosque e a loja junto à casa mortuária e arrendei esta onde estou agora. É mais pequena, mais visível na rua, e serve perfeitamente para o que se pretende”
A Florista Jardim da Falagueira existe naquela rua há cinco anos. Vende uma grande variedade de flores. Gerberas (desde 2€), rosas (desde 3,5€), tulipas (3,5€), estrelícias (4€), coroas imperiais (4€) e girassóis (5€) são as mais requisitadas, enumera Ana. “Mas também temos ramos de noiva e fazemos todo o tipo de trabalhos de noivas”, exemplifica. Menos felizes, mas igualmente necessárias, as coroas funerárias custam a partir de 60€, tudo com entregas onde o cliente quiser — gratuitas se forem na Amadora.
“Sim, dá para o negócio, dá. Claro que estes dias especiais, faço bastante mais dinheiro. Mas nos dias normais, já tenho os meus clientes certos, regulares, que estão habituados a mim, que me ajudam bastante, e que se lembram de vir cá comprar as flores sempre que precisam. Por isso, vou vendendo sempre. Todos os dias tenho trabalho”, garante à NiA.
“Ainda mais, agora”
As flores não dão, porém, para grandes luxos. Essa é uma das razões que obriga Ana Cristina a dividir o seu tempo por outras atividades. “Estou a trabalhar no refeitório de uma escola, entre as 11 e as 15 horas. Ou seja, chego aqui à florista às 9 horas, estou cá até às 10h30, vou para a escola e volto às 16 horas.
Ana agradece a compreensão dos clientes. “Eles já sabem, já me conhecem há muitos anos. E percebem por que razão eu tenho de trabalhar fora daqui. Portanto, quando não se lembram, vêm cá e a porta está fechada, voltam mais tarde. Eu só posso estar-lhes agradecida. Têm me ajudado muito. Ainda mais, agora”, repete.
Ana está ainda a endireitar-se de uma rasteira que a vida lhe pregou. Não sabe se alguma vez vai ficar bem, mas não se deixa arrastar para o abismo. “O meu marido faleceu no dia 1 de maio do ano passado, e agora sou sozinha, tenho de me virar, tenho de trabalhar mais, tenho de fazer mais dinheiro e tenho também de ocupar mais o meu tempo livre para não pensar em tristezas”.
A partida do seu companheiro de vida foi um choque, com aviso prévio de prazo reduzido. “Foi quase repentino”, diz, baixando os olhos. O tom de voz é agora mais baixo. Colocamo-la à vontade: se não quiser falar, não fala. Ana Cristina Vítor quer falar do seu João Vítor. “Apareceu-lhe um tumor nos pulmões em dezembro. Disseram-me logo que não havia nada a fazer”. Morreu cinco meses e meio depois.
“A minha vida ficou totalmente de pantanas”, diz, com um suspiro que vem das profundezas. Recomposta, a voz volta ao normal. “Tenho muita força, sou uma mulher de garra, muito lutadora, não paro e estou sempre a arranjar coisas para não estar parada”. Foi assim que, antes de 2020, teve um restaurante com a filha ao mesmo que o marido estava na florista e foi assim, que quando as autoridades de saúde fecharam o restaurante durante a pandemia, passou a fazer “costura criativa”.
“Tenho de ter sempre alguma coisa para fazer para limpar a cabeça. Costumo dizer que as flores entraram na minha vida por acaso, deram-me os anos mais felizes da minha e foram elas que me salvaram depois da morte do meu marido”.
Foram 34 anos de casada, mais dois de namoro. “Sempre nos demos muito bem, não é nada fácil, perdê-lo assim”, admite. Do casamento nasceram dois filhos: o “rapaz” emigrou para a Suíça com a namorada. A “rapariga” separou-se e voltou para o ninho da mãe. “As razões não são boas, claro, porque uma mãe quer sempre ver a filha feliz, mas é um apoio importante que eu tenho ali. Porque, como calcula, a noite, quando desligo do trabalho, é o pior dos meus dias”.
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