Marco Mouta, 44 anos, um dos quatro filhos de Vasco e Margarida, ainda se lembra de, “muito novo”, andar a brincar na Bavi, a papelaria-livraria que o pai ajudou a construir no centro da Amadora, em frente à estação de comboios. “Lembro-me perfeitamente, claro, O espaço era enorme”, porque à área atual da loja ainda há que juntar a área de A Teia, a mercearia especializada situada ao lado e que, no final da década de 70, início de 80, era uma só casa”.
Fundada em 1976, portanto, a caminho dos 49 anos, a Bavi é considerada a “papelaria mais antiga da cidade”, embora não haja registos formais que o atestem. “Trabalho cá há dez anos e sempre o ouvi dizer”, conta à New in Amadora Victor Ferreira, um dos dois funcionários que restam na loja histórica.
São eles que tocam agora o barco para a frente, depois da morte, no início de janeiro deste ano, de Vasco Mouta, aos 93 anos. “Em rigor, ele não foi o fundador, mas esteve cá quase desde o início e foi a alma da livraria”, conta Victor, que recorda o processo de formação do estabelecimento.
“A casa começou com os senhores Bandeira e Vidinha — por isso é que se chama Bavi —, e como eles se conheciam todos de Angola, o senhor Vidinha não descansou enquanto não colocou o senhor Vasco no seu lugar, porque o senhor Vidinha gostava de lançar projetos, mas não queria ficar preso a eles. Portanto, a história da Bavi é toda com o senhor Vasco e o senhor Bandeira”.
O cheiro a papel na Bavi
Quando se entra na livraria-papelaria, é impossível não sentir o peso da idade que foi avançando. Mas, sobretudo, o cheiro a papel, típico das muitas páginas que ali se vendem, nas compridas estantes de madeira no corredor longo e estreito.
“Neste momento, o forte são os livros escolares. Desde Sintra até à margem sul, toda a gente vem cá comprar. Porque nós fazemos uma coisa diferente. A maior parte das livrarias investem nos livros escolares em agosto, setembro e outubro, que são os meses fortes do arranque do ano letivo, mas depois deixam de os vender”, conta Victor à NiA.
A Bavi trabalha esse segmento o ano inteiro, e “são as próprias escolas a recomendarem aos encarregados de educação” irem à loja da Amadora, comprar os livros. “Na Linha de Sintra nós somos quem vende mais livros escolares. É o que me dizem as editoras”, garante o funcionário.
E os números não mentem. Em 2024, a Bavi vendeu cerca de 14 mi livros escolares, embora Victor lamente que “a margem de lucro seja cada vez mais esmagada pelas editoras”.
Também na zona de papelaria, “há coisas que não se encontram em mais lado algum”, garante o, por estes dias, responsável não oficial da loja.
“Ainda temos muito material de escritório e papelaria. Não deixámos de ter aquelas coisas que foram substituídas pela informática, como o livro de ponto, livro de registos, faturas manuais, livros de IVA. Tudo coisas que as empresas mais modernas já fazem online, mas há muita gente que continua a usar manualmente”.
“Era uma força da natureza”
Victor Ferreira lembra o patrão com saudade. “O senhor Vasco veio aqui até à pandemia. Ele era uma força da natureza. Morava em Massamá, apanhava o autocarro e vinha. Claro que já não trabalhava da mesma maneira, já não tinha a mesma força, mas fazia questão de vir. E fazia sempre qualquer coisa”.
E os elogios não param. “Era uma pessoa extremamente respeitadora dos clientes e dos colaboradores. Esta casa não deve um tostão a ninguém. Nem ao Estado, nem às Finanças”. De trato fácil, conversavam muito, embora “nem sempre estivessem de acordo”. Como por exemplo no futebol. “Ele era do FC Porto e eu do Benfica”, ri-se.
Vasco Mouta “viveu para isto, para o negócio”. Com a pandemia, “a coisa complicou-se, ficou mais baralhado e o comboio já lhe fazia confusão”.
“O mais certo é isto ter os dias contados”
Com dois empregados apenas, “o negócio paga-se a si próprio, porque a loja é dos herdeiros mas eles não tiram grande rendimento daqui”. Victor tem consciência que o futuro é muito incerto. “O mais certo é isto ter os dias contados”, diz à New in Amadora, para logo a seguir justificar-se. “Eles são quatro filhos, têm todos a vida montada, e isto não é a vida deles. Felizmente, estão todos bem”.
Victor deixa claro que “nunca” falou com os herdeiros sobre o futuro da Bavi, mas diz entender se a opção for fechar. “Não estando o pai, não tendo a mãe, provavelmente poderão vender a loja, que está bem situada e tem uma boa área”.
A decisão, porém, não está tomada, garante Marco Mouta, um dos quatro herdeiros. “Diria que nesta fase está tudo em cima da mesa. É tudo muito recente, o meu pai faleceu em janeiro e, portanto, ainda estamos a avaliar as hipóteses”, explica à New in Amadora.
Marco Mouta acrescenta que “o negócio tem as suas dificuldades, típicas do embate entre o comércio tradicional e as grandes superfícies”. Ou seja, “uma concorrência cada vez maior e uma margem de lucro cada vez menor”.
O drama é que “as pessoas mais velhas vão morrendo e a malta mais nova vai para as grandes superfícies ou compra online”. Além disso, “a própria comunidade da Amadora mudou, já não é tanto comunidade, está mais disperda”.
“Na parte final da vida do meu pai, no Hospital de S. José, uma vez fui lá vê-lo e o enfermeiro perguntou-me: ‘quem é o senhor?’. Quando eu disse que era o filho, ele abriu o sorriso e disse: ‘eh pá, comprei os meus livros escolares todos na Bavi’. Portanto, havia um carinho, uma comunidade em redor da loja, que provavelmente vai acabar por se perder”, conclui.
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