“Era visível a alegria das pessoas, que não estavam habituadas a ver este tipo de festas nestes meios urbanos”, conta Eduardo Mouta, sobre a primeira vez que se realizou uma festa local em honra de São Brás, na Amadora. Já lá vão 34 anos, mas o autor do livro “Do Sonho à Realidade” lembra-se bem daquele momento, assim como de várias outras histórias que marcaram a vida dos moradores do bairro ao longo das últimas décadas.
A festa aconteceu entre 26 de janeiro e 3 de fevereiro de 1991, com um programa carregado de atividades, como a “Hora Santa”, a “Benção da Cruz”, a procissão, a missa campal, atuações do grupo coral, do rancho folclórico e até espetáculos de jazz. Pelo meio, ainda se ouviram fanfarras, os miúdos jogaram futebol e houve “uma quermesse, bar, arraial e foguetes” no Casal de São Brás.
“A partir daí, todos os anos, passámos a celebrar as festas para honrar o padroeiro, para congregar a comunidade e também para angariação de fundos para a construção da nova igreja”.
Esta é uma das histórias que pode ler no livro escrito pelo amadorense Eduardo Mouta, lançado em maio do ano passado, e que fala sobre a comunidade e a paróquia de São Brás ao longo das últimas quatro décadas.
Eduardo cresceu no seio de uma família cristã em Cinfães, no distrito de Viseu, e isso acabou por definir o resto da sua vida. Agora, com 75 anos, todas as pessoas do bairro, da freguesia ou da Amadora sabem quem ele é: um homem bom, com quem podem contar em qualquer altura. Ou, como o próprio diz: “Fiz tudo para prevalecer o bem, ter honra e amor ao próximo”, sem esperar algo em troca.
A sua vida não foi fácil, como aconteceu com quase todos os portugueses que nasceram na década de 40. Eduardo foi obrigado a trabalhar desde miúdo com o pai, Cristóvão, que era comerciante de gado, fruta e madeiras, enquanto a mãe Júlia tratava das tarefas de casa. Era o sexto de oito filhos — cinco miúdas e três rapazes.
“Nos tempos livres, brincávamos com pontas de barrotes de madeira que faziam de automóveis onde desenhávamos as portas e janelas que pintávamos com a tinta de amoras silvestres. Ou brincávamos com uma mota de madeira que construímos com outros garotos. O meu pai ensinou-me que, na vida e nos negócios, me deveria pautar sempre pela honestidade e nunca faltar à palavra dada”.
Apesar da pobreza e das dificuldades, garante que teve uma infância “feliz”. Mas Eduardo queria mais da vida. Por isso, com 16 anos, foi aprender a trabalhar na área da mecânica de automóveis, para uma terra a 20 quilómetros de casa, com o cunhado.
“Ia todos os dias na camioneta da carreira da empresa, de segunda a sábado. Saía às sete da manhã e regressava às 21 horas. Um colega de trabalho disse que me vendia uma bicicleta muito velha em troca de uma arroba de milho (15 quilos), que os meus pais me deram para fazer o negócio”.
E continua: “Passado algum tempo, comprei outra melhor pelo valor de 1.050,00 (mil e cinquenta escudos), foi a prestações de 100,00 (cem escudos por mês). Quando perdia a camioneta da carreia, ia de bicicleta para o trabalho. Era um luxo nessa altura ter uma bicicleta. Por vezes, ia trabalhar também para o Porto para outra oficina da mesma empresa”.
Eduardo queria ir para Luanda, em Angola, onde estava o irmão mais velho, Francisco, que era dono de uma oficina. No entanto, a mãe pediu que ficasse por ali, “já que estavam a ficar sozinhos”. O jovem não teve coragem de contrariar a tristeza da família, mas em 1970 teve mesmo de sair de casa depois de ter sido chamado para a tropa. Foi colocado no quartel do CICA 4, em Coimbra, onde se especializou como mecânico. Em junho do ano seguinte, o que todos temiam acabou por acontecer: Eduardo Mouta foi mobilizado para o pior palco da guerra do Ultramar, a Guiné, onde esteve até 1973.
“Durante todo o tempo em que lá estive, a minha mãe não deixou que se ligasse o rádio lá em casa. O relato desse tempo difícil da minha vida, passado no teatro de guerra, está no diário que escrevi durante a permanência na Guiné e que os meus filhos, mais tarde, publicaram no livro ‘Um pouco de Vida’”.
Apesar do cenário duro e de guerra, Eduardo manteve-se longe dos combates mais violentos, até porque trabalhou essencialmente como mecânico no quartel que dava apoio aos restantes soldados.
O regresso a Portugal
No final da comissão, Eduardo regressou à sua aldeia de Cinfães — que se mantinha igual. Mas a verdade é que ele já não era o mesmo homem. Aqueles anos transformaram-no e reforçaram a vontade de conhecer o mundo. Por isso, decidiu finalmente viajar para junto do irmão, em Angola.
“Queria ter uma vida diferente. Não podia conformar-me com o que tínhamos na aldeia, apesar de viver razoavelmente bem. Sabia que, em Angola, existiam outras possibilidades”. Assim foi. Partiu em março de 1974 e só voltou em novembro de 1975, no rescaldo da revolução de Abril. E voltou não como um português normal — regressou com o rótulo de retornado.
“Não fomos bem aceites quando regressámos e tivemos muitas dificuldades em arranjar trabalho. Só para Portugal vieram umas 500 mil pessoas. O tecido empresarial estava saturado, por isso, decidi tentar a minha sorte no Brasil. Fui em fevereiro de 1976, mas não gostei do ambiente. Depois, fui para a Alemanha sondar e perceber se havia hipóteses. Passei pela Bélgica, por Espanha e por França, mas era difícil. Recebemos um carimbo e só podíamos ficar 15 dias por sermos retornados. Acabei por ficar em Portugal”, recorda.
O primeiro destino onde ponderou fixar-se foi no Porto, mas desistiu logo da ideia porque vinha do calor da África, para o frio do norte. E assim surgiu a possibilidade de se mudar para a Amadora, em 1977. “Eu e o meu irmão tínhamos um amigo de Angola, o Fernando Rocha, que tinha o restaurante Tété, na Amadora. Era aí que fazíamos encontros entre as pessoas do Ultramar. Num dia, disse que havia uma oficina para trespasse e, assim, começou o negócio”.
Eduardo refere-se à oficina Autoreparação Douriense — o mesmo nome que tinha o projeto em Angola. Mantiveram clientes que, entretanto, tinham migrado da antiga colónia para a Grande Lisboa e receberam outros tantos que reconheceram o valor da empresa.
“Não foi fácil. Tivemos de pedir algum dinheiro emprestado ao início e, pouco a pouco, conseguimos ter sucesso. Era uma oficina especializada na marca Peugeot”, diz.
A vida de Eduardo Mouta sempre andou a um ritmo mais acelerado do que a maioria dos portugueses. Mas esta terá sido a fase em que encontrou finalmente estabilidade. Logo a abrir a nova década, em 1980, casou com Lucinda, com quem vive até hoje e que é a mãe dos seus quatro filhos —Ana Mafalda, Cláudia, Joana e Gonçalo — e quatro netos — Carolina, Eva, Duarte e Amélia. Pelo meio, construiu o Grupo Moutacar, e em 1985, tirou o curso de Mediador de Seguros. Seis anos mais tarde, em conjunto com mais dois sócios, montou, na Amadora, uma empresa de Mediação e Consultoria de Seguros, a Triseguros.
Ao longo dos anos seguintes nunca perdeu a vontade de aprender sempre cada vez mais. “Tirei cursos profissionais de Mecânica de Automóveis, Organização de uma Oficina de Reparação Automóvel, Marketing e Técnica de Vendas, Atendimento a clientes e Resolução de conflitos laborais, participei em várias ações de formação tanto ligadas aos automóveis como aos seguros, eventos, congressos, convenções e feiras, tanto em Portugal como no estrangeiro”.
Em 2006, Eduardo montou mais uma oficina de reparação de automóveis multimarcas, no Cacém, a STOPCACÉM, que funcionou até 2022, altura em que se reformou depois ter caído de uma escada a montar as decorações dos Santos Populares na paróquia e partido o colo do fémur.
Apesar do incidente e de estar reformado, continua super ativo em todas as associações de voluntariado de que faz parte — e que foi acumulando em simultâneo com a sua carreira. Foi, por exemplo, um dos fundadores da freguesia de São Brás e também da comissão de moradores. Mas fez muito mais do que isso.
“Fui vice-presidente do conselho fiscal da Sociedade Filarmónica Comércio e Indústria da Amadora, participei em várias campanhas políticas no Concelho da Amadora, fui um dos impulsionadores da comunidade católica do Casal de São Brás, que ficou a funcionar na cave da escola primária depois de se fazerem obras de adaptação”, revela.
Tem participado em vários projetos, iniciativas e ações, sempre em prol da população e da comunidade da zona. Mas, possivelmente, o seu grande projeto social nasceu em 1983, quando, em conjunto com a comunidade, começou a tentar angariar fundos para a construção de uma nova igreja da Paróquia de São Brás. Depois de várias décadas de esforço, a primeira fase da obra ficou finalmente concluída em 2019, resultado de um orçamento de 1,3 milhões de euros. Este longo caminho é contado precisamente no seu novo livro.
O início do projeto e da comunidade
“O saudoso sacerdote Luís Maurício, que era pároco da Amadora, desafiou-me, para juntamente com ele, e depois com o professor Eduardo Barata, darmos os primeiros passos para a criação de uma comunidade católica no bairro do Casal de São Brás. A Câmara Municipal da Amadora cedeu as instalações da cave da escola Artur Martinho Simões, e aí, depois de fazermos obras de adaptação, foi celebrada a primeira Eucaristia, no dia 12 de fevereiro de 1984”.
Eduardo Mouta acrescenta: “Foram criados grupos de catequese, grupo coral, de leitores e como a população do bairro ia crescendo, ia aumentando também o número de pessoas que tinham necessidade de manifestar a sua fé. Com o passar dos anos, este espaço tornava-se pequeno para acolher tanta gente que recorria aos serviços da comunidade. O terreno foi cedido em 1979, pelo recém-criado Município da Amadora”.
A verdade é que a comunidade não tinha dinheiro para a execução da obra para a nova paróquia. Apesar “dos muitos eventos realizados”, da “colaboração de várias entidades”, incluindo da Câmara Municipal, tiveram que recorrer a um empréstimo bancário, “para fazer face ao compromisso assumido”. E este acabou por ser o principal motivo da publicação do livro “Do Sonho à Realidade”.
“Além de dar a conhecer a história desta comunidade de São Brás, o livro faz referência histórica e arqueológica a este território da agora Amadora. Recua a tempos medievais, para referir como chegou o cristianismo a estas terras. Terá, como finalidade também, a angariação de fundos para amortizar a dívida contraída na construção da igreja”.
Outra das paixões do amadorense — que contribuiu em muito para o sucesso do livro, que já conta com mais de 200 vendas, só a nível de contacto pessoais —, é pela história em geral, e pela da Amadora, em particular. “Fiz apontamentos de como tudo começou. Queria ter memória de como tudo aconteceu, ao pormenor. Daí o livro ter sido um trabalho progressivo”.
O livro de Eduardo Mouta está à venda na Paróquia de São Brás, pelo preço de 15€. O valor reverte na totalidade para a amortização da dívida da construção daquele edifício.