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Esta livraria de rua na Amadora vai às escolas pescar jovens leitores

A Palavras de Culto já atingiu a maioridade. Cresce em faturação há cinco anos consecutivos e tem uma missão na comunidade.
Alexandre Crespo está ligado aos livros há 25 anos.

Alexandre Crespo, 43 anos, não se lembra do primeiro livro que leu na vida. Logo ele, um apaixonado por livros e que há quase 19 anos é dono da Palavras de Culto, uma das poucas, — “se não mesmo, a única” —, livraria de rua da Amadora.

O livreiro esquece, porém, o momento fundador, que o despertou para “o prazer de folhear um livro, do cheiro a papel, das histórias por descobrir”. “Teria talvez os meus dez anos, quando um tio me ofereceu ‘A Cidade e as Serras’ e ‘Os Maias’, de Eça de Queiroz. Ainda não tinha idade para compreender aquelas obras, só as li mais tarde, mas nunca mais me esqueci daquele gesto, e de como foi importante para mim”, conta à New in Amadora.

Hoje, garante, ainda guarda os dois livros em casa, “com um enorme carinho” — foram o princípio de tudo. A vida do empresário sempre foram os livros. “Aos 16 anos, o meu primeiro trabalho foi numa espécie de Feira do Livro e, depois, trabalhei para as Publicações Europa-América. E foi de lá que saí para embarcar esta aventura.”

A empresa já atingiu a maioridade — a loja comemora 19 anos em outubro. “Penso que somos a única livraria tradicional da Amadora, mas existem algumas papelarias que vendem uns quantos livros. Nós somos uma livraria, é esse o nosso core business, embora, claro, também vendamos, algum estacionário, mas pouco. Essencialmente material escolar e manuais, nas semanas que antecedem o arranque do ano letivo”, conta.

Alexandre fundou a livraria com uma sócia, que, há cerca de dez anos, decidiu seguir outros projetos. “De lá para cá, tenho estado sozinho ao leme do barco, embora sempre na companhia da minha mulher, que também é uma leitora compulsiva”, explica. 

A Palavras de Culto está a caminho dos 19 anos.

O espaço, situado na Avenida Elias Garcia, freguesia da Venteira, “reúne todo o tipo de livros”. “Das novidades aos clássicos. Temos várias secções, desde literatura lusófona, policial, fantasia, traduzida, história, gestão e finanças, saúde e bem-estar”, enumera. Ao todo, estima, “entre a loja, no piso térreo, e no armazém, em baixo, temos cerca de 20 mil livros em stock”.

Neste negócio de rua, do chamado comércio tradicional, a palavra “crise” não é pronunciada uma vez durante mais de meia hora de conversa — coisa rara nas histórias que a New in Amadora tem contado.

“Até tenho medo de dizer estas coisas, porque pode dar azar”, diz, entre risos, “mas tem havido um crescimento contínuo desde a pandemia”. “Têm sido cinco anos de crescimento na faturação. Todos os anos, faturamos sempre mais do que nos anteriores”.

As razões do sucesso são simples de explicar. “Além da variedade de livros e novidades literárias que temos, há um atendimento personalizado e atencioso que praticamos aqui. Os clientes entram, nós sabemos como se chamam, do que gostam. Quando sai alguma novidade que pensamos que determinada pessoa vai gostar, reservamos logo um exemplar a contar com ela”, assegura o proprietário.

À pesca de novos leitores

O livreiro reconhece que a faixa etária que mais frequente à livraria “é constituída por gente mais velha, que ainda lê com prazer em papel, e tem capacidade financeira para comprar”.

Esse privilégio, porém, pela lei natural da vida, tem de ser compensado com a captação de novos leitores. E como se consegue essa proeza, numa altura em que os miúdos estão cada vez mais agarrados aos telemóveis e aos ecrãs?

“Os leitores mais novos que conseguimos angariar vêm através dos manuais escolares, essa é uma aposta forte nossa, assim como o trabalho ativo, que fazemos com muito orgulho dentro da comunidade”, sublinha à NiA.

A Palavras de Culto vive também fora das quatro paredes da loja e organiza, em conjunto com escolas do concelho, feiras do livro regulares, onde promove atividades inseridas no calendário escolar, em harmonia com os professores e as direções escolares.

“Ainda agora, por exemplo, estamos com uma feira do livro na Roque Gameiro. Na semana passada, fizemos uma na Francisco Manuel de Melo, e são essas atividades que também nos aproximam dos leitores”, destaca Alexandre.

Quando vai às escolas, os miúdos já o conhecem. “Há um plano definido. Posso dizer-lhe que já temos programadas as feiras nas escolas de uns anos para os outros”, acrescenta. O Natal é sempre uma época agitada, com um calendário mais preenchido, porque comercialmente também é mais forte. “Mas, o final do ano letivo e a Páscoa, que se aproxima, também são boas”, enfatiza, adiantando que as feiras nas escolas “são feitas em colaboração com os professores-bibliotecários, que reconhecem este trabalho como muito importante”.

“O facto de ser uma atividade curricular obrigatória, acompanhada pelos professores, ajuda a que os alunos tenham um contacto mais real com os livros e com as bibliotecas. Uma semana antes de cada feira, recebemos calendarização das visitas de todas as turmas das escolas. Depois, é feito um horário em que aquela atividade é inserida nas atividades letivas”, concretiza Alexandre Crespo.

Estas atividades da Palavras de Culto são destinadas a alunos dos 1.º, 2.º e 3.º ciclos do ensino básico (dos seis aos 15 anos) e até aos do ensino secundário (dos 15 aos 18).

“Tenho consciência que a maioria dos alunos vai porque é uma aula, e porque os professores explicam que a presença é a obrigatória. Não vão por verdadeiro prazer, mas o facto de saírem da sala de aula é, para eles, uma alegria”, reconhece o livreiro. “Mas depois, quando lá estão, é contagiante ver a alegria deles”, sorri.

Garantindo que “todos os livros que levas às escolas são rigorosamente novos”, o proprietário procura escolher títulos diversificados “a preços acessíveis a miúdos com menor capacidade financeira” e, ao mesmo tempo, “com temáticas que possam ser interessantes para as idades deles”.

Família é essencial

As escolas e a livraria procuram envolver os familiares no processo. “Só podia ser assim, aliás. Os pais são uma peça essencial, porque, sem eles, é difícil conquistar mais jovens para a leitura. A escola não pode fazer esse trabalho sozinha”, sublinha.

“Temos muitos miúdos que, no dia seguinte, aparecem com o dinheiro para comprar o livro. Ainda hoje, na Roque Gameiro, com jovens de 13, 14 anos, tivemos alguns que ligaram para os pais dali mesmo, com autorização dos professores, para receberem transferência por MB Way e levarem logo os livros.”

Nas escolas do 1.º ciclo, com alunos até aos 10 anos, a Palavras de Culto e os professores agendam sempre um dia em que “os pais possam entrar e partilhar a atividade com os filhos”, diz Alexandre, ele próprio pai de duas filhas, uma de 10 e outra de cinco.

“Ver a minha filha mais velha vir das aulas para aqui e vê-la a ganhar o gosto pelos livros e até por atender as pessoas, que já a conhecem e que acham muita graça, é um grande prazer para mim enquanto pai”, afirma.

É esta conquista, jovem a jovem, que o livreiro quer continuar a fazer. “A leitura não é uma batalha perdida, temos é de desenvolver estratégias que os atraiam para os livros. Não é tirar-lhes os ecrãs, é dizer-lhes que, além dos ecrãs, há outras coisas interessantes, que lhes fazem bem, e são importantes para o seu crescimento em sociedade.”

Alexandre reflete e remata: “Criámos aqui uma espécie de comunhão social, de que nos orgulhamos muito. Temos, aliás, um certificado que comprova que somos um projeto de responsabilidade social, o que também contribui para estarmos vivos e de boa saúde”. Afinal, a Palavras de Culto não quer ter clientes únicos, que entram na loja uma só vez, mas sim, clientes regulares, que “continuem a vir por muitos anos”.

Carregue na galeria e veja mais algumas imagens de uma das raras livrarias de rua da Amadora.

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FICHA TÉCNICA

  • MORADA
    R. Elias Garcia 372 Loja B
    2700-338 Amadora
  • HORÁRIO
  • Segunda a sexta-feira, das 9h30 às 18h30
  • Sábado, das 9h30 às 13h
  • Encerra ao domingo

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