Aos 48 anos, Cristina Afonso é uma mulher livre. Porque faz o que gosta com a dança e porque não se deixou prender ao medo, quando, há 14 anos, recebeu o diagnóstico de esclerose múltipla. Antes pelo contrário: continua a provar que “é possível ter uma vida normal” e é uma inspiração para outras pessoas.
“No início foi um pouco complicado, não vou esconder. Quando veio o diagnóstico, achei que era o fim do mundo. Já dançava, era psicóloga e pensei que seria o fim dos meus sonhos, que ia ficar numa cadeira de rodas. Esse é sempre o primeiro medo que temos: perder a mobilidade”, confessa à New in Amadora.
Os sintomas começaram “um pouco antes” do diagnóstico. “Primeiro, deixei de ver bem de um olho. Esse foi o primeiro surto e o mais intenso, mas agora sei que algumas coisas que já tinha sentido antes, já eram manifestações da doença.”
Passado o choque, o tempo foi passando e Cristina foi aprendendo a conhecer melhor a esclerose múltipla, que “tem várias caras”. “Nós não somos todos iguais e, portanto, nem todos temos os mesmos sintomas”, esclarece.
No início, a psicóloga não falava muito da sua condição clínica. “Era mais reservada”, concede. Mas depois, achou que poderia ajudar outras pessoas. “Pensei que se há tanta gente que sofre de esclerose múltipla, se calhar é bom conhecerem o outro lado. Mesmo para a sociedade, é importante perceber que a vida pode seguir, sabendo controlar os sintomas.”
Cristina, que no mundo da dança é conhecida como Cris Aysel, não tem dúvidas que a dança tem sido “fundamental no processo de lidar com a doença”. “Ajudou-me a manter-me ativa, que é fundamental para quem tem esclerose múltipla. Para já, a doença não afeta a minha mobilidade e espero que nunca afete, embora nunca se saiba. Claro que houve pequenas coisas que eu tive de adaptar, mesmo na dança. Às vezes, posso ter menos equilíbrio e, então, tenho de fazer mais reforço e tenho de aceitar que, se calhar, há algumas coisas que já não vou fazer como antes.”
Hoje é uma espécie de porta-estandarte da doença, que assinalou o seu dia mundial no passado 30 de maio. “A doença não pode ser um tabu. E, por isso, comecei a falar mais desta condição. E tem sido muito bom. Tenho muitas alunas que também têm esclerose múltipla e que vieram praticar danças orientais porque souberam da minha história”.
Dança: o simbolismo da data
30 de maio não é apenas o Dia Mundial da esclerose múltipla em todo o mundo. Foi também nesse dia, mas há 25 anos, que Cris Aysel se tornou bailarina de danças orientais.
Estávamos em 2000 e, pouco depois, a dança oriental tornava-se um fenómeno, sobretudo pelo impacto que a novela O Clone teve. A sua estreia em 2001 no Brasil e em 2002 em Portugal, com a personagem Jade, interpretada pela atriz brasileira Giovanna Antonelli, provocou “uma explosão, uma loucura”, recorda Cristina.
“Todos queriam ser a Jade e eu comecei a dar aulas nessa altura, aproveitando o boom. Ser a Jade era o objetivo de todas as meninas e foi quando houve necessidade de mais professores. E foi aí que no local onde eu tinha aulas, a dona do estúdio convidou-me, porque disse que achava que eu teria jeito para ensinar e ser bailarina profissional”, recorda à NiA.
Começou por substituí-la pontualmente, depois passou a ter as suas próprias turmas e nunca mais parou. “Até formar a All ForDance, a minha própria escola e associação, cujo nome é uma brincadeira fonética com Alfornelos”.
Na escola, que pertence à Associação Aysel Dance, da proprietária, aprende-se danças orientais (também conhecida como dança do ventre), indie fusion, fusiona bellydance, dança contemporânea, fitness for all e burlesco.
“Temos uma grande variedade de disciplinas e professores, há estilos para todos. Não é preciso ter um corpo perfeito, nem uma idade certa; o que importa é que a pessoa queira dançar. Tenho alunos desde crianças, até pessoas que estão acima de 60. Nada é impeditivo para. E acho que a dança oriental tem este lado muito democrático, da sensualidade”, afirma Cristina, interessada em combater, também aqui, estereótipos. “A sensualidade das formas está nos olhos de quem as vê. Temos de combater esse preconceito”.
O fascínio das cores, das sedas, da fluidez dos tecidos, da sensualidade dos movimentos, ajuda a construir essa magia e sedução do Oriente. “Quem experimenta também consegue perceber o outro lado: o bem-estar a fazer a dança, descobrir partes do corpo que nunca pensou ter, o de sentir-se bonita a dançar e não estar refém dos estereótipos. Eu tenho de me sentir bonita para mim própria, primeiro que tudo, não para os outros. E isso contribuiu muito para a autoestima individual”, prossegue.
Começou no ballet aos 4 anos por causa postura
Cristina Afonso teve vários sonhos ao longo da vida. “O primeiro foi bailarina, porque já fazia ballet clássico. Também queria ser professora”, recorda. Concretizou os dois. O ballet chegou cedo à sua vida. Logo aos quatro anos.
“Foi um médico ortopedista que recomendou aos meus pais que nos pusesse no ballet, porque eu punha os joelhos para dentro, ficava com os pés muito separados. Fui eu e a minha irmã. O objetivo era corrigir a postura”, explica, a mulher que nasceu no Brasil filha de pais minhotos, de Monção, e que veio para Portugal aos nove anos — embora ainda conserve o sotaque adocicado típico do outro lado do Atlântico.
Cris Aysel só descobriu as danças orientais quando estava no Instituto Superior de Psicologia Aplicada (ISPA), onde se formou em Psicologia. “Um ano em que, no Dia Mundial da Dança, uma bailarina de dança oriental fez um espetáculo lá na faculdade e fiquei fascinada.”
A dança ajudou-a soltar-se. “Era muito tímida e a dança oriental ajudou a relacionar-me com os outros. Foi um dois em um.” Com os estudos concluídos e já professora de dança, decidiu abrir o seu próprio espaço, em Alfornelos, freguesia da Encosta do Sol, onde ainda hoje se mantém.
“Quando viajámos do Brasil, viemos logo para cá e em 1992 os meus pais abriram um café aqui, a que deram o nome de “As brasileirinhas”, em homenagem a mim e à minha irmã. O café estava no piso térreo e havia um piso superior, onde eu montei a associação e o meu consultório de psicologia.
O café esteve aberto 25 anos, e fechou em 2016. Era um espaço muito acarinhado pela comunidade local. Mas o meu pai já tinha 80 anos e queria descansar e até foi ele que sugeriu que eu ficasse com o espaço todo para expandir a escola. “Para mim, tem um grande simbolismo, porque eu trabalhei ali com eles, fiz-me mulher ali”.
O pai adoeceu e morreu de cancro em 2017. “No ano seguinte foi a minha mãe, portanto, eu sinto que manter o meu sonho ali é a forma de perpetuar as suas memórias”, diz à New in Amadora.
Carregue na galeria para ver algumas imagens de Cris em ação, a dançar na All For Dance.