“É muito fácil ter a fama, mas o proveito vai sempre para outro lado”. É assim, num misto de conformismo e indignação, que Bia, como gosta de ser tratada, fala da Cova da Moura, o bairro estigmatizado da Amadora, onde a comunidade africana se foi juntando, construindo as próprias casas, desde o final dos anos 60.
Bia, que está “quase nos 70 anos”, gosta de morar no bairro onde chegou em 1976. “Isto era um deserto, muito pouca gente morava aqui e os que moravam já tinham começado a construir as suas casas. Mas havia muitos barracos de madeira”, recorda à New in Amadora.
“Conhece a Rua Principal?”, perguntara-nos Bia na véspera, da entrevista. “É muito fácil, não há que ter medo. Vem com o carro, sobe a Rua Principal e depois vira à esquerda a meio da rua”.
À hora marcada, deu-se o encontro. Não foi difícil. Casas de todas as cores, de várias formas, algumas não terminadas, gente sentada à porta, ou nas cadeiras de plástico dos cafés, jovens em pequenos grupos fumando cigarros.
Bia sai da sua casa, que está protegida com um portão de grades altas. Coxeia visivelmente, sorri, estende a mão em sinal de cumprimento. “Desde que fui operada ao joelho, nunca mais fui a mesma”, lamenta-se, quando lhe perguntamos pela saúde. “A idade já pesa”.
Natural de Santo Antão, uma das novas ilhas habitadas de Cabo Verde, veio para Portugal em 1974. “O meu pai e dois irmãos já cá estavam, mas eu vim sozinha”.
A mãe ficou na ilha a tratar dos restantes irmãos — sim, os pais tiveram dez filhos. “Hoje somos oito, porque dois já morreram”, explica.

Desde cedo, Bia afirmou-se como uma mulher de luta e de trabalho. “Tinha de ser. Nunca virei a cara ao trabalho, nem a ajudar os outros. Aqui toda a gente me conhece. Se perguntar na Cova da Moura pela Bia, não há ninguém que não saiba quem eu sou”, afirma.
Não se sente uma líder da comunidade, mas sabe que tem contribuído para a união da população cabo-verdiana do bairro. A mercearia que teve perto de casa durante “cerca de 20 anos” também ajudou. “Foi o meu primeiro negócio, tinha tudo o que era preciso, e as pessoas sabiam que eram coisas frescas e de qualidade”. Correu tudo bem até 2015, quando o marido morreu.
“Fiquei sozinha com os três filhos — hoje com 46, 43 e 41 —, tive o problema na perna, deixei de ter forças e a mercearia foi ficando para trás”, acrescenta à New in Amadora.
“Sempre que o meu marido vinha, eu ficava grávida”
Bia não esconde que foram “tempos difíceis a fazer de pão e mãe ao mesmo tempo”. Mas, em rigor, sempre foi assim, revela. “Ele era embarcadiço, portanto, passava muitos períodos fora e, portanto, quando ele vinha, eu ficava grávida (risos). Quando ele voltava, os miúdos já tinham nascido e às vezes já a andar”, conta bem-disposta.
Habituou-se a estar sozinha, até porque os três filhos chegaram a estar fora de portas a trabalhar. “O mais novo está a tirar o doutoramento em Taiwan, embora passe temporadas aqui na Cova da Moura, na casa ao lado da minha”. É precisamente isso que está a acontecer agora.
Bia tem mais de portuguesa do que cabo-verdiana. “Vim para cá em 74, portanto, já estou cá há muito mais tempo”. De lá tem a memória de uma infância feliz e sem dificuldades com os seus nove irmãos.
“O meu pai era lavrador na terra, matava-se a trabalhar, mas nunca nos faltou nada. Sempre houve comida em abundância em casa. Foi uma infância farta”.
Agradecida à Cova da Moura
A quase septuagenária é uma mulher agradecida à Cova da Moura e aos amigos que fez no bairro. “Se pudesse trocar de sítio para morar, não trocava. Gosto de viver aqui. Nunca senti perigo algum. Acho que a fama da Cova da Moura é injusta, e tem muito a ver com o preconceito contra os imigrantes africanos, o que não quer dizer que não haja uns traquinas e más pessoas. Mas isso há em todo o lado. Até nos melhores bairros”.
Dizendo que está no seu canto e que não se mete com ninguém, Bia sublinha que “respeita toda a gente” e gosta de “ser respeitada”. “Antigamente, éramos menos e todos se conheciam. Houve muitos que morreram, outros que saíram daqui e chegou muita gente nova”, mas a dona da antiga mercearia sempre fez tudo para juntar a comunidade.
“De vez em quando, abro a minha casa para sessões de música ao vivo. Tenho um terraço aqui de cima, aos fins de semana. Convido umas pessoas, depois os amigos trazem os amigos e é uma animação”, revela à New in Amadora.
Os cabo-verdianos, é sabido, “gostam de convívio, de música, de comida”. “O grupo que eu convido para cantar é cabo-verdiano e passamos aí um bom bocado. Por vezes, também faço comida para eles”.
E também canta? “Não, não canto nada. Mas encanto”.
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