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Este “miúdo traquina da Falagueira” foi bombeiro durante 50 anos. Agora dedica-se à pesca

Mário Nabais entrou no quartel aos 14 anos. Aos 65 e já reformado, ainda passa por lá — mas tem tempo para o hobby de sempre.
Mário equipou-se a rigor para a reportagem.

Quando era miúdo, sempre que ouvia a sirene dos Bombeiros Voluntários da Amadora tocar, Mário Nabais, hoje com 65 anos, fugia da escola para ver os carros vermelhos passarem na rua. “Sempre me fascinaram. Já em casa era a mesma coisa. Ia para a porta para ver para onde iam e ficava a pensar o que estaria a acontecer e que também, um dia, gostaria de ir ali dentro daqueles autotanques e ser bombeiro”, conta à New in Amadora.

Os pais é que gostavam pouco da brincadeira. “Levei muita mocada deles, sobretudo da minha mãe, que não entendia o fascínio que eu tinha pelos bombeiros. Até porque não tinha havido ninguém na família nesta atividade”, recorda.

Aos 14 anos, porém, os pais encolheram os ombros. “Eh pá, se ele quer ir para os bombeiros, vá para os bombeiros, não podemos fazer nada”, terá dito o pai de Mário à mãe. Era verdade. “Não havia nada a fazer. Eu tinha metido na cabeça que era aquilo que eu queria, e não havia forma de me demover”, reforça.

Mário nunca tinha sido bom aluno. “Nem gostava da escola. Por isso é arranjava todos os pretextos para fugir”, conta, divertido. “Era um miúdo traquina da Falagueira, queria era andar na rua”. Os bombeiros, confessa, viriam a ser a sua verdadeira escola de vida.

E que vida. Foram 50 anos seguidos. “Sempre no ativo”, nota Mário, que fazem dele o bombeiro mais antigo da Amadora, embora reformado no ano passado e à espera de passar ao Quadro de Honra da corporação.

“Entrei aqui no quartel com 14 anos, quase a fazer 15. Saí com 64”, aponta. Sair é como quem diz, porque Mário Nabais continua a ir aos bombeiros duas a três vezes por semana. “O bichinho nunca passa. Só quando um bombeiro vira calhau é que o bichinho morre com ele. Portanto, eu vou ser bombeiro toda a vida, até morrer”, assegura.

“No primeiro dia como bombeiro não estava nervoso”

É lá, aliás, que nos recebe para esta reportagem. “É para o Nabais?”, perguntam-nos assim que entramos. Que sim, respondemos. “Agora é que ele vai ficar ainda mais famoso”, diz um colega na brincadeira.

Na central, chamam pelo seu nome, como nos bons velhos tempos. Mário já sabe ao que vem. Aparece fardado, óculos de massa, bigode farfalhudo, já grisalho. Sente-se o orgulho na farda que enverga. A conversa decorre na sala de estar da corporação, um espaço amplo, surpreendentemente arranjado, com bom gosto, estética e conforto.

A justificação não tarda: “sabe quem é que arranjou esta sala para nós? Foi o “Querido, Mudei a Casa”, que há uns anos fez um programa especial cá nos bombeiros. Ficou um sítio muito bonito, com copa, sala de estar e espaço de lazer.

Nas paredes, há fotos alusivas à atividade. Mário abre um saco de plástico branco e verde, que ainda não havia largado, e de lá de dentro, tira uma fotografia a preto e branco com uma moldura clássica. “Este sou eu quando aqui cheguei. Tinha lá esta foto em casa e achei que era giro trazer”.

Como que por magia, a foto provoca o desfiar do novelo das memórias. “Lembro-me perfeitamente do primeiro dia de trabalho. Um gajo nunca mais esquece, não é? Nervoso, não estava, mas lembro-me que estava muito entusiasmado com o que me esperava, sem nunca pensar, claro, que ia passar aqui os 50 anos mais ricos da minha vida”, sublinha à New in Amadora.

Dada a idade, Mário teve de fazer “quatro recrutas”, porque só podia ser promovido aos 18 anos. “Portanto, mal entrei, comecei a fazer a recruta. Só quando passei a pronto, que neste caso é bombeiro de 3.ª, é que passei a ser assalariado, como se dizia na altura”. Depois, “veio o primeiro serviço, veio o segundo e pronto, depois, entra-se na rotina e é sempre em frente [risos]”.

O último fogo: “Agora que me vou embora é que vou morrer”

O rosto de Mário ilumina-se quando fala do que viveu naquele quartel. “Foram anos maravilhosos em que fiz muitas amizades, mas em que também apanhei alguns sustos. É inevitável. Quem anda nesta vida, a salvar as vidas dos outros, é óbvio que pode colocar a sua em risco. Por isso é que é precisa muita cabecinha. Ser bombeiro é muito difícil, é preciso muito sangue-frio”, diz, enquanto vai posando para as fotografias.

Um dos sustos maiores foi, precisamente, o seu último serviço. “Foi em Castelo Branco, o último fogo que fui combater. Aquilo estava medonho, incontrolável. E lembro-me de ter pensado: ‘Olha, agora que me vou embora é que vou morrer’.  

Na memória de Mário Nabais está o dia mais complicado de todos. “Uns anos antes, na Serra de Montejunto, apanhei o mais violento incêndio de que me lembro, com o chefe Paulo. Chegámos a despedirmo-nos um do outro. Demos um abraço e dissemos ‘vamos ficar aqui os dois’. Graças a Deus, conseguimos escapar. Conseguimos correr para cima e não para baixo. Porque se tivéssemos corrido para baixo, vinha o carro de Algés e matava a gente”, conta.

A experiência conta muito. “Assim que chegámos ao terreno, com aquilo tudo a arder, disse logo ao meu colega: ‘Prepara-se que vamos levar porrada, que este cabrão vai dar luta’. E deu. Havia uns quantos camaradas a gritar para nós: ‘Pirem-se, pirem-se’, mas nestas circunstâncias fugir é sempre pior”, assegura.

Mário viu uma filha chegar a bombeira de 3.ª, mas abandonou a farda quando se casou. E orgulhou-se do filho, também bombeiro, que um dia vinha da Ericeira para entrar ao serviço no quartel, despistou-se de automóvel e “acabou tudo ali”. Agora, como é a vida deste homem? 

“Ainda me estou a habituar à vida de reformado. É estranho, até porque tenho 65 anos, não sou nenhum velhinho, que só queira sopas e descanso”, diz, bem-humorado. “Estava habituado àquela rotina, àquela adrenalina e, depois, parar de repente, não é fácil. Por isso é que continuo a ir ao quartel duas ou três vezes por semana. Estou lá um bocado, passo o tempo, converso, recordo os bons momentos”, diz, acrescentando que “ainda bate uma saudade grande”.

No final de abril, quando foi o apagão em Portugal, o comandante dos Bombeiros Voluntários da Amadora “deu ordem” aos seus homens para irem buscar Mário a casa e trazerem-no para o quartel. “Pode ser precisa alguma coisa e ele tem experiência, disse o comandante. Olhe, acabou por ter de se fazer comida [risos]. Não havia luz, fizemos churrascos. Pus-me a fazer bifanas e entremeadas para todos. Estive ali entretido e assim o tempo passou”, descreve à NiA.

Mais tempo para se dedicar à pesca

A vida de reformada trouxe-lhe tempo. O que lhe faltou ao longo dos últimos 50 anos para praticar mais vezes um hobby que adora. “Gosto muito de pesca, sempre gostei. Não tinha muito tempo e agora tenho tempo de sobra. Portanto, passei a ir mais à pesca. Sempre passa o tempo e me divirto”, relata.

No quartel, fez muitos amigos. “Isto aqui é uma família. Eu sou o avô, porque sou o mais velho deles todos”, diz, enquanto descemos as escadas que nos vão levar ao parque automóvel, onde estão em prontidão os carros, autotanques e bombeiros de serviço, prontos para qualquer eventualidade.

“Este grandalhão fartou-se de trabalhar comigo”, diz Mário, em frente a um autotanque gigante vermelho, com as letras da corporação. “Muito potente, leva tudo à frente. Era sempre o meu. Podemos tirar aqui umas fotos”, sugere. E tiramos. Dois minutos depois, pedimos-lhe que entre num outro veículo, bem mais pequeno, e se sente ao volante. “Vamos a isso, mas não posso ir para o interior do carro sem estar devidamente fardado”. Do bolso, tira o boné. E com sentido de missão, sentencia. “Bombeiro que é bombeiro tem de ter sempre o boné”.

O “avô” Nabais diz que “há muita gente nova” na corporação. E elogia o “sangue novo”, que é sempre importante, mas nota diferenças. “O espírito de missão era outro. Você estava aqui com amor à camisola, amor mesmo, porque a gente passava mais tempo no quartel do que com as nossas famílias. Hoje ainda há aqui pessoal com amor à camisola, mas a malta mais nova já não é assim. E faz sentido. O voluntariado nos bombeiros tem tendência a acabar”, diz, acrescentando que “os bombeiros de todo o país deviam ser mais valorizados pelo poder político”.

O trabalho de um bombeiro é mais do que acorrer a incêndios. “Durante parte do ano temos outras atividades, no dia a dia da cidade: acidentes, ajudar a população mais velha, abrir portas, enfim, tudo isso”.

Mário tem orgulho em dizer que “ao longo destes 50 anos de atividade”, conquistou “o respeito” da população da Amadora. “Graças a Deus. Que eu me lembre, nunca fui maltratado por quem quer que fosse. Mesmo quando éramos chamados para brigas na rua e tiros, nós íamos sempre para acalmar. Às vezes, até esperávamos um bocado. Eu dizia muitas vezes ‘deixa estar, que quando acalmar, a gente vai lá”. Mas se houvesse senhoras ou crianças envolvidas naquilo, isso já eram outros 500”.

Na hierarquia dos bombeiros, Mário não chegou à 1.ª categoria. “Ser bombeiro de 2.ª, para mim, era o posto mais bonito, era o que almejava. Não mandava nem era mandado. Se mandassem em mim, mandava logo o outro a seguir”, diz, divertido.

Na única vez que concorreu para bombeiro de 1.ª, caiu e partiu um pé na véspera do exame. “Aquilo era um sinal e nunca mais quis concorrer. Fiquei sempre como bombeiro de 2.ª, que é o posto mais bonito”, repete.

Aos 65 anos, os dias passam mais devagar. E Mário está à procura de se habituar a um ritmo que nunca foi o seu. “Já fui casado, mas acabou e fiquei casado com os bombeiros”, revela, acrescentando que “é difícil viver com um bombeiro: a outra pessoa está sempre com o coração nas mãos”, reconhece.

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