na cidade

Jorge é guarda-noturno. Há 41 anos que não sabe se volta para casa no dia seguinte

Já levou um tiro e correu atrás de bandidos. Continua a gostar do que faz, apesar de haver menos gente a pagar os seus serviços.
Jorge já levou um tiro.

Chegaram a ser “vinte e tal” guarda-noturnos na Amadora. Restam três. Aos 63 anos, Jorge Cavalheiro é um deles. “Sou guarda-noturno na zona da Venteira há 41 anos, mas não penso em reformar-me tão cedo. Gosto do que faço, apesar dos sustos que já apanhei”, conta à New in Amadora.

Jorge entrou na profissão quase por acaso. “Para ganhar uns trocos”, confessa. Porque até aí, a sua história não tinha nada a ver com a noite, nem com a segurança. “O meu primeiro emprego oficial foi nos bombeiros, como maqueiro. Ganhava sete contos e 500 por mês, em 1980”. Ainda hoje é bombeiro na Amadora. “Já lá vão 47 anos e estou no quadro de honra”, conta, com visível orgulho.

Como ganhava pouco, a mãe falou com uma amiga, cujo marido trabalhava na ANOP, a agência de notícias que antecedeu a Lusa. “Estavam a precisar de alguém para fazer uma substituição de umas férias e eu queria ganhar uns cobres. Estive um mês na reprografia, a tirar fotocópias.”

Um mês depois, o titular da função voltou e Jorge Cavalheiro regressou aos bombeiros. Até que, dois meses depois, voltaram a telefonar-lhe da ANOP e acenaram-lhe com um contrato e “15 contos por mês”. “Era o dobro, a coisa fiava mais fino. Aceitei e lá fui primeiro, de novo, para a reprografia, depois para a receção e depois fui contínuo, e andava a distribuir as notícias pelos jornais”, explica.

Em 1982 foi para Santa Margarida fazer o Serviço Militar, que durou seis meses. Começou então a ouvir uns zunzuns de que a agência de notícias seria extinta — o que de facto viria acontecer, mas só em 1986, dando lugar à Lusa. “Fiquei preocupado e, por essa altura, conheci um guarda-noturno da zona da Venteira e comecei a trabalhar para ele na angariação de clientes porta a porta.”

Quando o colega mudou de poiso e foi para Sacavém, Jorge Cavalheiro tornou-se guarda-noturno oficial na Amadora. “Na altura, nós éramos guardas da PSP e o nosso cartão dizia mesmo Polícia de Segurança Pública – Guarda-Noturno, número tal, tal, tal. Hoje, já não é assim, trabalhamos todos de forma autónoma, sob licença da Câmara Municipal da Amadora.

Dar apoio à população

Jorge lamenta que a figura do guarda-noturno “já não seja tão respeitada como antigamente”. “Mas, os polícias também não são tão respeitados como eram, os tempos mudaram muito.”

O pior, porém, é que “cada vez há menos gente a aderir aos serviços”. “A Venteira é uma zona central da Amadora onde a população é mais envelhecida. Os velhotes que pagam vão morrendo e os mais novos vêem-se à rasca para pagar as rendas, quanto mais os nossos serviços. E os que podem, na maior parte dos casos, têm aqueles serviços de vigilância com alarme. Mas quando é para assaltar, os bandidos também assaltam essas casas.”

“Perdeu-se um bocado o respeito pela figura do guarda-noturno.”

Jorge aumentou a quota mensal recentemente. Agora é de 5€. Teve de ser. Tudo aumenta e eu já não aumentava há muitos anos. Repare: tinha quotas de 50 e 75 cêntimos. Não é possível. Mesmo assim, houve duas ou três pessoas que não aceitaram, paciência”, diz à NiA.

Jorge lembra que presta “um serviço às pessoas”. “Além da vigilância das áreas, nós fazemos montes de serviços, damos apoio à população. Desde aviar receitas, levantar pessoas de idade que caíram em casa. Tive uma senhora aqui na Rua 1.º de Dezembro que era quase todos os dias. Até ganhei uma hérnia discal à conta dela. Coitada, ela não tinha culpa, estava acamada, tinha Alzheimer”, enumera, realçando que com muitos moradores há “uma grande proximidade e carinho”.

O profissional de segurança já apanhou “alguns sustos”. “Todas as noites, quando saio de casa para ir trabalhar, não sei se volto”, diz, mas nem assim desiste do que faz.

“Já levei um tiro, estive uma semana internado. Não foi um bandido que me deu o tiro, foi um colega meu, mas porque lhe tentaram roubar a arma. A arma disparou acidentalmente, porque me atirei ao outro gajo e éramos três engalfinhados. Felizmente, o tiro foi no pé”, recorda, agora com um sorriso.

E prossegue no desfiar de memórias. “Uma vez ia atrás de uma viatura furtada e fui para o antigo bairro 6 de maio, junto à estrada militar. E de repente, quando fazemos a curva, estão os bandidos todos no meio da estrada, de caçadeira na mão a apontar para nós. E a disparar. Coloquei o carro no primeiro buraco que consegui enfiar e conseguimos fugir. Mas também ripostei”, conta à New in Amadora.

“As pessoas queixam-se, mas não querem pagar ao guarda-noturno”

Cavalheiro lamenta a ausência de qualquer tipo de formação. “Eu, por acaso, como fui primeiro cabo na tropa, usava pistola. Mas quem era soldado, não mexia em pistolas. Quando entrei para a polícia, fui levantar o material — porque antigamente, nós usávamos armas da polícia, não é como agora — e eles perguntaram-se eu sabia usar a pistola. Eu disse que sim, porque tinha sido primeiro cabo na tropa. Mas disseram-me: “ok, mas não use”. Eu até fiquei a pensar no absurdo: então, se não é para usar, para que é que nos dão a pistola?”

Jorge Cavalheiro sublinha que “a formação está prevista na lei”. “Nestes anos todos, se a polícia nos deu três vezes carreira de tiro, foi muito. Não temos qualquer ordenado, nem subsídio de risco. Nós vivemos do que as pessoas nos dão.”

O problema é que dão cada vez menos. “As pessoas queixam-se dos assaltos à noite, mas também não querem pagar a quota do guarda-noturno. Posso dizer-lhe que na Avenida Santos Matos, mais de metade das lojas não me pagam. Particulares, tenho quatro ali na rua. Mas no que toca aos comerciantes, mais de metade não me paga. Por exemplo, aquelas lojas todas que estão do lado dos Recreios, ali ninguém me paga.”

O profissional não tem dúvidas em afirmar que “ganhava mais há dez anos do que agora”. Financeiramente, o trabalho “já compensou mais”. “Consigo sobreviver: pago as minhas despesas mensais todas, mas não consigo juntar dinheiro. É impossível”.

O que o faz correr, então, aos 63 anos? “Gosto do que faço, gosto de ajudar as pessoas”, diz, sem hesitar. Por isso, não pensa na reforma. “Quero continuar a trabalhar até conseguir. Ou até não me renovarem mais a licença”, diz.

Para já, sente-se com força e mantém intacto o prazer de trabalhar à noite, sem saber se volta a casa na manhã seguinte. “Tento fazer o melhor possível, mas milagres não faço”, avisa.

Carregue na galeria e veja algumas imagens de Jorge Cavalheiro em ação.

ver galeria

MAIS HISTÓRIAS DA AMADORA

AGENDA