Na madrugada de 25 de abril de 1974, Arminda não sabia da Revolução. “Eu nem sabia o que era um golpe de Estado, calha bem”, conta. Com a amiga Zulmira, companheira de todos os dias, dirigiu-se para ao Mercado da Ribeira para ir buscar as hortaliças que venderiam, como habitualmente, em Benfica, essa manhã.
“Quando lá chegámos, os militares mandaram-nos embora dali, acenaram das chaimites, a dizer para irmos embora. Mas nós não sabíamos o que é que se estava a passar e achámos que eram eles que se estavam a meter connosco, por nós irmos num triciclo de caixa aberta”, recorda, entre gargalhadas, à New in Amadora.
Lá conseguiram ludibriar a coluna militar e entraram no mercado — mas não havia hortaliças, só cravos. “Ficámos espantadas e eu perguntei-lhe: ‘e agora, Zulmira, o que é que fazemos? Estamos feitas. O que vamos vender hoje?’” Carregaram 500 molhos de cravos — “metade para mim, metade para ela”.
A primeira paragem, como sempre, foi a estação de Benfica. “Não vendemos nada. Eu virei-me para ela e disse-lhe: ‘Estamos bem lixadas’, mas foi com outra palavra [risos]”. Acharam que tinham de se dividir e mudar de poiso. Zulmira ficou na estação da Damaia, Arminda veio para a estação da Amadora.
“Olhe, de repente começou a vender-se tudo. Cravos vermelhos, brancos, amarelos, tudo. A partir daí, apaixonei-me pelas flores e no dia seguinte voltei. Nunca mais deixei de vender flores aqui na estação da Amadora”, conta.
A história aconteceu há 51 anos, precisamente. Hoje, Arminda Cavaco tem 83 anos, embora a sua genica desminta a idade do Cartão de Cidadão. Fala com a velocidade da rajada de uma metralhadora, tem uma memória prodigiosa e uma pasta dentro do quiosque metálico onde guarda os seus pertences onde conserva todos os documentos oficiais, contratos ainda escritos à máquina, que faz questão de mostrar, um por um. “Veja este”, “Olhe este aqui”, “Que data é que está aí?”, vai perguntando, à medida que nos vai passando a documentação.
“Sempre fui assim, cheia de vida, cheia de força. Eu tinha sete anos e já estava a servir. Sete anos, sete. Quando agora oiço falar que aos 16 anos é exploração infantil, até fico com falta de ar. Então, o que é que eu era aos sete anos a tomar conta de quatro crianças?”, questiona.
“Tive uma vida difícil, mas não me queixo”
Natural da Sertã, veio para Lisboa “servir em casas muito ricas, graças a Deus”. Só quando se casou é que veio morar para a Amadora. “Sou de origens humildes, tive uma vida difícil mas não me queixo: fiquei viúva com 40 anos, não sabia ler e fui para a escola no turno da noite para aprender a ler porque precisava de tirar a casa para me orientar”, recorda à NiA.
Ainda hoje conduz no seu “carrinho”. “Tenho casa na Aroeira, vou lá ao fim de semana, meto-me no meu carrinho e lá vou. Fiz o meu património sozinha, porque o meu marido morreu aos 40 anos. Estava a comer um bocadinho de carne, foi para o goto e asfixiou. Entretanto, o meu filho teve um acidente de mota a seguir à morte do meu marido e perdeu os dois braços e há 11 anos, quando estava tão bem empregado aqui na Câmara, faleceu”, conta.
Apesar da sucessão de tragédias, Arminda não se deixa abater. “Não posso. Tenho coisas muito boas na minha vida. Tenho duas netas farmacêuticas, e tenho outra que está a tirar Assistente Social”. O sorriso volta a iluminar o rosto. “Apesar de tudo, sou grata à vida, porque estou aqui com 83 anos, tenho muitas pessoas que me querem bem, tenho os meus clientes, que me conhecem daqui. Já reparou na quantidade de gente que me cumprimentou desde que está aqui a conversar comigo?”, pergunta à New in Amadora.
É verdade. Mesmo em passo de corrida, as pessoas passam, acenam, perguntam-lhe se está tudo bem. “Já há cravos?”, questiona-a uma cliente. “Olhe para aqui, uma maravilha”, explica, enquanto puxa por um e abre-o para ficar bonito. “Muita gente não sabe como é que se abre um cravo, tudo isto tem uma técnica, não é de qualquer maneira”.
O 25 de Abril tem um significado especial para a vendedora de flores. “Não só pelo significado que tem para o nosso país, pela Liberdade que nos trouxe, mas também porque mudou a minha vida, completamente por acaso. Eu nunca tinha vendido flores antes daquela manhã de 1974”, recorda.
Arminda não esconde que ganhou “muito dinheiro” ao longo destes 51 anos de venda. “Antigamente, as flores faziam parte das compras da semana de qualquer dona de casa. A pessoa ia à praça e a primeira coisa que fazia era comprar um ramo de flores, nem que fosse para colocar em cima da mesa. Hoje não, as flores vendem-se muito menos. Hoje vendem-se mais rosas para oferecer em aniversários ou ocasiões especiais”.
A vendedora lembra que chegou a estar junto à estação “às seis da manhã para aviar clientes”. Hoje abre às 10 horas. “Por isso, o senhor vê bem a diferença”. Houve mais coisas que mudaram com os anos.
“Antes, a Amadora era uma aldeia, era uma família, toda a gente se conhecia. Quando uma determinada pessoa que todos dias saía aqui na estação da Amadora estava três dias sem a vermos, já ficávamos preocupadas. Eu ainda tenho rapazes amigos, com 50 ou 60 anos [risos], que eram miúdos na altura, e que nós deixávamos aqui a venda para os ajudar a atravessar a linha, quando a estação ainda era a antiga, que não havia passagens subterrâneas”.
Os cravos da Revolução
O quiosque onde está agora, situado no Parque Delfim Guimarães, é o terceiro espaço onde vende flores na estação da Amadora. “Já tive outro quiosque ali a 50 metros, e já vendi ali na rua, ainda era a estação antiga. Agora, espero já não ter de mudar, também não hei de ficar aqui muito mais anos”, desabafa.
Não que deseje a reforma, até porque, garante, não está cansada. “Não estou, juro-lhe. As flores são a minha vida. Estou todo o dia de pé, nunca me sento. Fico passada quando oiço as pessoas a dizerem que estão cansadas ao fim do dia. Eu não me canso. E não me sento”.
Para esta sexta-feira, 25 de abril, Arminda tem muitos cravos para venda. “Cada cravo é 1€. É claro que se levarem um molho de cravos, ficam a 50 cêntimos, mas se for um individual é 1€. Acho que é um preço justo. Se as pessoas dão 1€ ao carocho, também me dão 1€ a mim”, diz.
O negócio é sempre imprevisível, mas a florista espera vender esta sexta-feira “entre 200 e 300 cravos”. “Isto varia muito. Olhe, no Dia da Mulher, perdi mil euros, não se vendeu nada. Nada. No entanto, no Dia dos Namorados, foi o melhor dia da minha vida a vender aqui na Amadora. Fiz muito dinheiro. Eu e a minha filha viemos para aqui às 8 horas da manhã e saímos daqui às 9 horas da noite e nem um café bebemos. Foi sempre pá, pá, pá, pá. Nem um chichi consegui fazer”.
Carregue na galeria para conhecer mais sobre a florista que nasceu com a revolução.