na cidade

O homem que não se cansa de investir e todos conhecem no Casal de São Brás

Há 28 anos abriu a pastelaria Seara. Antes, José Martins já tinha tido uma cervejaria, outro café e uma casa de bilhares.
Tem 70 anos.

José Martins Fernandes está sentado numa mesa individual na esplanada da pastelaria Seara, no Casal de São Brás, na Amadora. Está uma manhã fresca, mas sem chuva. Em cima da mesa, um papel e uma esferográfica. Sem o conhecermos, passamos por ele e entramos no estabelecimento.

A funcionária já com muitos anos de casa, que tinha intermediado o encontro entre o patrão e a New in Amadora, dá-nos os bons dias e pergunta: “Quer falar com ele? Já está lá fora à sua espera”. Arrepiamos caminho e fomos diretos à esplanada, bem concorrida às 10 horas.

“José Martins Fernandes?”, perguntamos. “Sim, sou eu, mas aqui no bairro toda a gente me trata por Martins”. Levanta-se e estende-nos a mão. Já sabe quem somos e ao que vimos.

“Então, quer falar da Seara, não é?”, questiona. Não só, mas também. Proprietário da pastelaria, que abriu há 28 anos, naquele popular bairro da freguesia da Mina, José Martins — ou “Sr. Martins”, como todos fazem questão de o tratar — é um verdadeiro filho do bairro, mesmo sem ter ali nascido.

“Sou de Castelo Branco e vim para Lisboa a 4 de agosto de 1960.  Vim morar para a Amadora, para as barracas de Alfornelos, ali em baixo. A minha mãe chegou um mês depois, a 4 de setembro. O meu pai comprou uma barraca em Alfornelos, onde morávamos todos. Com os meus irmãos, éramo sete pessoas em casa”, descreve.

Gosta da Amadora e do bairro do Casal de São Brás, onde se estabeleceu há muito tempo, embora com umas pequenas “traições” pelo meio.

“Já vi nascer muita gente aqui. Também já vi muita gente morrer”, diz à NiA, com um sorriso, com alguma ironia. E prossegue: “Quando viemos cá o bairro, o meu filho tinha 9 anos. Hoje tem 52. Sempre morei aqui, em três locais: lá em cima na rua J, depois aqui na Oliveira Martins, depois saí do concelho, comprei umas moradias, em Tercena e em Caxias, mas quando fiquei sozinho com a minha mulher, depois do filho sair de casa, comprei um apartamento em Vila Chã”, a urbanização de classe média/alta paredes meias com o Casal de São Brás.

Toda a gente o conhece, toda a gente lhe fala

A conversa vai correndo serena, mas cheia de ritmo. A memória do sr. Martins é prodigiosa. Vai desfiando, quase por ordem cronológica os factos que considera relevantes, nem esperando pelas perguntas. Não perde nunca o fio à meada, apesar das vezes em que é interrompido.

“Então, senhora Martins, como está essa saúde?”, pergunta-lhe uma senhora ainda nova, que transporta um carrinho de bebé. “Cá se vai andando”.

“Olá Sofia”, diz, entretanto, a outra cliente, que acaba de sair da pastelaria que se prepara para responder, abeirando-se do empresário. De repente, coloca a mão na boca, cala a resposta, e pede desculpa, quando vê o gravador em cima da mesa.

“As pessoas gostam de mim”, diz, à New in Amadora. “Conhecem-me muito bem”, acrescenta. É natural. A Seara é apenas um dos quatro investimentos que José Martins Fernandes já fez no bairro. “Sempre tive uma grande capacidade de empreender”, justifica.

O primeiro negócio que abriu foi do outro da rua. “Em novembro de 1981, abrir ali a Cervejaria Os Martins. Fui eu e o meu cunhado.” O espaço já não é seu, mas continua a trabalhar e de portas abertas.

“Depois, abri uma segunda casa, que era uma pastelaria, aqui na Joaquim Namorado”, aponta com o dedo indicador da mão esquerda. “Era também Os Martins, mas, entretanto, mudou para Flor de São Brás”.

Depois, passados mais uns anos, “abri um salão de bilhar e cervejaria, onde é agora a Caixa Geral de Depósitos. Tive isso também durante uns 7 ou 8 anos. Nunca ganhei tanto dinheiro na vida”, ri-se, confirmando que “os bilhares davam muito dinheiro”.

Vendeu tudo, e, como tinha na altura 50 anos, pensou reformar-se dos investimentos. “Não faço mais nada, fico-me por aqui”.

Uma coisa, porém, bem sabemos, é a razão, outra é o coração. “O bichinho estava cá, eu sempre gostei de mexer, de apostar, de investir”, sustenta. “Um dia, a passar ali no Alto da Brandoa, vi uma loja num sítio bom”. A coisa resolveu-se facilmente. “Falei com o construtor e comprei-a logo ali, para abrir uma pastelaria.”

Era uma loja grande, que permitia fazer pastelaria com fabrico próprio. Mas investir na maquinaria era muito só para a Brandoa. “Não seria grande sucesso. E então, como tinha esta loja, que estava arrendada, mas que, entretanto, tinha ficado vazia, abri aqui a Seara.”

É a Seara do Alto da Brandoa que produz para as duas casas. Deu mais espaço à fábrica, comprando mais uma loja, em frente do espaço da Brandoa, e fez de lá a produção. “É lá que se faz tudo o que se come nas duas Searas. As casas sempre funcionaram em simultâneo.”

O drama bateu-lhe à porta há 20 anos, quando viu um dos filhos morrer, vítima de acidente de automóvel. “Foi um choque para todos nós, e um momento de grande dor. Perdi um pouco da vontade, fiz a cedência das quotas da casa da Brandoa, que continua a ser minha, mas a exploração é do indivíduo que lá está”, explica.

O negócio corre bem. “Não nos podemos queixar”, mas “a Seara trabalha muito bem, tem produtos bons, e empregados competentes e que, na maior parte dos casos, já têm muitos anos de casa”. Os clientes, diz, “gostam de uma certa estabilidade, gostam de conhecer os funcionários, gostam de ser tratados pelo nome e que, mesmo sem pedirem, a torrada aparada e o galão escuro lhes apareça na mesa”.

Da sopa dos pobres ao Ministério do Ultramar

Aos 76 anos, Fernandes diz ser um “afortunado”, mas não tem dúvidas que “a vida não foi fácil e obrigou a muito trabalho”. “Quando viemos de Castelo Branco e os meus pais compraram uma barraca em Alfornelos, foram tempos difíceis. Fomos à sopa dos pobres em Benfica. A minha mãe ia lá buscar diariamente uma panela de sopa e três pães e meio”, que era a garantia de sustento para a família.

Aos 11 anos, começou a trabalhar. “Foi numa taberna no bairro Tacha, onde hoje é a Buraca”. Depois, como tinha um tio a trabalhar na Pastelaria Suíça, em Lisboa, conseguiu “ir para lá quando tinha 15 anos”. “Aprendi muito, estive lá nove anos, até ir para a tropa”, revela.

“Não é para me gabar, mas tinha uma grande capacidade de trabalho. E quando saí da tropa, em 1972, um colega que tinha trabalhado comigo na pastelaria Suíça, trouxe-me para a Minabela da Amadora, onde já trabalhava, que ficava ali onde é agora o BPI ao pé do Jardim Delfim Guimarães”, recorda.

Foi aí que pensou mais à frente. “Então, se eu estou habituado a gerir a casas, a despedir pessoas, a contratar pessoal, mais vale trabalhar por minha conta”.

E foi assim que se estreou, por sua conta e risco, com “mais um rapaz amigo”, no Ministério do Ultramar, em Belém. “Era uma loucura. Servíamos 1200 almoços por dia e por volta de 900 pequenos-almoços. Ganhámos muito dinheiro ali, antes do 25 de Abril”. Tinha 24 anos e, garante, “virava o mundo com o trabalho”.

A Revolução, porém, é que lhe virou a vida. “Quando se dá o 25 de Abril, deitou-me um bocado abaixo a minha vida.  Nós tínhamos alguns 15 empregados, e as coisas tornaram-se mais difíceis”, admite.

E dá exemplos das mudanças de preços, para se perceber a ordem de grandeza. “O azeite era a 17 escudos o litro. Passou para 34.  A carne era a 150 escudos do quilo. Passou para 300.  O bacalhau deixou de haver no mercado. O Ordenado Mínimo Nacional também subiu. Um empregado a lavar a louça e trabalhar no self-service ganhava, por exemplo, 1.800, 1.900 escudos por mês. Passou para 3.300. E nós estávamos sujeitos a preços fixos, tínhamos dificuldades em acomodar esse aumento brutal do custo de vida”, confessa.

Falta simpatia no atendimento

José Martins Fernandes para de falar. Acena para quatro mesas mais à frente, onde um casal de clientes fiéis se acaba de sentar. “Vêm cá há muitos anos e são muito simpáticos. E eu também sou para eles”, diz.

Baixa o tom de voz, aproxima-se de nós e revela, como se contasse um segredo. “Sabe, a simpatia é muito importante, mas hoje é difícil arranjar pessoal competente e simpático. Estou farto de dizer ao meu pessoal que a simpatia conta muito. É muito importante para o cliente”, enfatiza.

E há uma razão para isso, assegura o empresário: “O cliente é que deixa cá o dinheiro. Se não houver clientes, não temos empregados. Por isso, os clientes têm de sentir que são bem tratados”.

Hoje, porém, “a malta nova tem muito jeito para ir ao ginásio, às festas e para estar ao telemóvel”, mas “não sabe ser simpática”.

O senhor Martins ‘reformou-se’ há “quatro ou cinco anos”, mas faz questão de ir todos os dias à sua Seara. “Agora já não venho cá trabalhar, mas não consigo deixar de vir cá todos os dias, às vezes até mais do que uma vez”, diz.

“É muita vida aqui dentro, não consigo deixar. Repare, eu abri esta casa todos os dias durante uns 25 anos. O meu filho só começou a abrir quando eu deixei de trabalhar. Dei-lhe 50% da sociedade e agora já é praticamente todo. Mas não faz nada sem me consultar. Eu sou um apoio importante. Gosto disso, que ele sinta que o meu apoio pode ajudar”, conta, orgulhoso.

Ao contrário do que aconteceu aos 50 anos, Martins sabe que desta vez é de vez. “Não, não vai haver mais qualquer investimento. Já tenho 76 anos, já não tenho nem idade, nem saúde”, afirma, acrescentando ter “vários problemas de saúde” e que, desde que deixou de trabalhar, a sua vida “tem sido sempre nos médicos.

“Já tive um AVC há oito anos, depois fui operado à coluna, agora, neste mês, vou fazer uma limpeza às veias do coração. Fiz agora um TAC e o cardiologista quer que eu faça uma limpeza”, conta à New in Amadora com ar resignado.

O avanço da idade, nota-se, entristece-o, embora não o confirme. Mas percebe-se pelo tom. “Sou caçador, mas este foi o último ano que fui à caça. Já me deixei disso, não tenho saúde”, explica.

“Tenho um cão de caça que vou dispensar a um amigo que ainda pratica. É uma pena, é um Épagneul. Só lhe falta falar, vai buscar as perdizes e trá-las. Mas já não tenho capacidade para isso”, lamenta.

A decisão está tomada e é definitiva. “Vou vender as espingardas que tenho. Fico apenas com uma, por via das dúvidas, se me apetecer ir a uma montaria”.

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FICHA TÉCNICA

  • MORADA
    Estr. Serra da Mira 48A Casal São Brás
    2700-788 Amadora

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