“Este é um ano especial para mim. Faço 88 daqui a dias, 65 de padre, 50 como responsável pela paróquia da Brandoa e 36 como responsável de Alfornelos”, conta, orgulhoso, sentado no seu gabinete, Sidónio Peixe, o mais antigo padre em atividade no concelho da Amadora.
Veste um polo amarelo e, ao lado da cadeira, tem a sua “melhor amiga”, uma bengala que o ajuda a dar força às pernas. “Isto depois dos 87 é sempre a descer, vá-se preparando”, diz, em jeito de brincadeira. “Aliás, por isso é que me chamam aqui o prior velho”, acrescenta a rir-se.
O humor é, aliás, uma marca distintiva da personalidade do madeirense Sidónio, licenciado e doutorado em Roma. “A velhice é isso mesmo. Se não nos resta algum sentido de humor e sabedoria, nem vale a pena viver”.
As pernas podem já precisar de uma ajuda, as palavras já se atropelam um pouco, mas a cabeça continua bem lúcida e a memória prodigiosa. Na conversa com a New in Amadora, vai recordando nomes e datas com a facilidade com que se desenrola um novelo de lã.
“Se me lembro do primeiro dia que entrei aqui? Por amor de Deus, então não me haveria de lembrar?”, pergunta, como se a questão fosse um absurdo. E, vai-se a ver, era mesmo. “Cheguei a 1 de novembro de 1975. Isto ainda não era a Brandoa, era uma terra de ninguém da freguesia da Amadora, que ainda pertencia ao concelho de Oeiras. Chamavam Texas e Terra dos Índio a estes terrenos ”, porque, à época, era o maior bairro clandestino da Europa”, recorda.
Sidónio Peixe deu aulas no Instituto Superior de Estudos Sociológicos e na Universidade Católica Portuguesa. “Adorava dar aulas, mas eu queria mesmo era dedicar-me em exclusividade à atividade de padre, paixão que me vinha desde pequenino”, confessa.
Quando veio o 25 de Abril, o pároco da Brandoa e de Alfornelos estava sinalizado como “o padre comunista”. “Ainda antes da Revolução, havia um senhor sempre vestido de preto que vinha às minhas missas, nunca intervinha. Quando se dá o 25 de Abril, disseram-me que ele tinha sido preso. O homem era um PIDE infiltrado nas minhas missas para fazer os relatórios”, conta.
Sidónio repõe a verdade. “Não era um padre vermelho. Nada contra o Partido Comunista, mas nem sei de onde é que vinha essa ideia. As minhas homilias seguiam apenas o Evangelho, não eram nada progressistas”, reforça.
A relação com os paroquianos
Antes de decidir ficar pela Brandoa foi ver com os seus próprios olhos. “Nunca tinha vindo cá. Lembro-me que chovia muito nesse dia, e aqui a rua principal, hoje Rua da Liberdade, era um mar de lama a correr por aí abaixo. No dia seguinte, voltei para uma missa. Fiquei atrás, porque ninguém me conhecia e assisti à missa que foi dada por um padre da Consolata, que vinha dar cá de propósito”.
O Patriarcado estava à procura de alguém para aqui e eu aceitei e fui nomeado vigário, até porque a Paróquia da Brandoa só viria a ser reconhecida como tal a 12 de dezembro, começando a funcionar em pleno em janeiro, com todos os poderes constituídos para celebrar batizados e casamentos.
A ligação que hoje o pároco tem com a sua comunidade é quase umbilical. Há um carinho que se nota. A igreja paroquial é frequentada por muitas crianças e utentes mais velhos, uma vez que ali funciona também uma parte do Centro Social Paroquial da Brandoa, criado em 1980 pelo padre Sidónio para dar resposta às dificuldades sociais da população da Brandoa.
A sua ação desenvolve-se através das seguintes respostas sociais: Creche, Jardim de Infância, CATL 1º ciclo, Centro Juvenil, Centro Jovem, Lar de Idosos (ERPI), Centro de Dia, Centro de convívio e Serviço de Apoio Domiciliário.
“A relação com os paroquianos é muito boa, muito próxima. Sempre fui muito bem tratado a apaparicado”, diz, enquanto se levanta da sua cadeira, se agarra à bengala e prepara-se para mostrar à New in Amadora os cantos à casa.
Passo lento, vai parando para cumprimentar os miúdos. Sabe os nomes de quase todos. Do bar irrompe um homem que quer dar um abraço ao pároco. “Foi este homem que me casou. A minha mãe está sempre a falar de si”, diz, já com um grãozinho na asa, abraçando o padre com força e sem se aperceber do impacto desse abraço na condição física de Sidónio Peixe.
“E é isto. Toda a gente gosta de mim e eu gosto de toda a gente. Nunca ando de batina, as pessoas conhecem-me assim, em mangas de camisa ou de camisola no inverno. Quando celebro a missa, claro, aí uso a batina, como manda a tradição. Agora aqui, no dia a dia? Ainda tenho algum juízo”, diz na brincadeira.
Há 13 anos que Sidónio está para sair. “Um padre nunca deixa de ser padre, mas segundo o Direito Canónico, aos 75 anos é a data-limite para exercer e, portanto, quando fiz essa idade, pedir ao D. José Policarpo, então Cardeal-Patriarca de Lisboa, para sair e ele não aceitou. Depois veio o D. Manuel Clemente, e eu fiz 80 anos, e voltei a pedir, e ele também disse que não. Voltei a renovar o pedido em 1984 e ele disse logo: ‘O senhor não pode sair da Brandoa. O senhor padre é o pai da Brandoa. O que será feito dos seus paroquianos sem si?’. Agora com o novo patriarca, voltei a colocar a questão, e ele disse para fazer mais um ano. Pronto, e lá vou fazer mais um ano”, diz com um sorriso, enquanto sobe as escadas agarrado ao corrimão com a mão esquerda, enquanto a direita segura a bengala.
O mais antigo padre em atividade na Amadora quer-se ir embora não por “qualquer animosidade com alguém”, mas porque “a idade já pesa”. “Já não tenho idade nem saúde para isto. É que sou responsável por esta paróquia e pela de Alfornelos, há muitos assuntos a tratar, muita gente para atender. Ando sempre entre cá e lá”, conta.
E faz uma revelação. “Ainda sou eu que conduzo o meu carro. Já não devia, porque tenho consciência que os reflexos já não são os mesmos, mas é mesmo só entre aqui e Alfornelos. Já não me aventuro em mais voltas”.
Como Sidónio perdeu a confiança nas freiras
Nunca teve um plano B, sempre quis ser padre. A minha avó Virgínia era muito devota, e lembro-me de estar sentado no chão, com quatro anos, lá na Raposeira, na Madeira, na casa dela, a ouvir as histórias que ela contava. E ela sempre dizia que eu tinha de ser padre.
O primeiro revés nos homens aconteceu, porém, na terceira classe. “Eu estudava num colégio de freiras em Porto Moniz, e escrevi uma carta a Nossa Senhora a dizer queria ser padre. A professora, que também era freira, tinha jurado que não ia ler as cartas dos alunos, mas pouco tempo depois, perguntou-me: ‘então, queres ser padre?’ E eu fiquei indignado e pensei logo: ‘ai que ela mentiu-nos e foi ler as cartas’. A partir daí perdi a confiança nas freiras”.
Quando estava na quarta classe, Sidónio Peixe tinha dois amigos que foram para o seminário. Quando voltaram, o jovem aspirante só lhes fez duas perguntas: “lá no seminário, os professores batem ns miúdos? E eles disseram-me que não. Porque as freiras chegavam-nos a roupa ao pelo. A segunda pergunta que lhes fiz era se jogavam à bola no recreio, — e responderam que sim. Então, vou. Quero ser padre.”
A avó apoiou muito a ideia. “A minha mãe não se metia nisso, o meu pai não gostou muito. Mas lá se convenceu”, recorda à New in Amadora.
“Nunca tive dúvidas. Sempre senti esse chamamento de Deus. Nós vivíamos no seminário isolados, portanto, nem pensava em mulheres, namoradas. Era para aquilo que eu queria, ser padre. Portanto, não tive qualquer crise de vocação”.
Apesar dos seus quase 88 anos, Sidónio Peixe acredita que a Igreja deve acompanhar as mudanças da sociedade, embora perceba que haja casos sensíveis. “Em relação à ordenação das mulheres, acho que as mulheres têm todo o direito de ser padres. A dificuldade da Igreja Católica é que do ponto vista teológico, é difícil dar esse passo, porque basta pegar no Evangelho e perceber que Jesus não escolheu nenhuma mulher e teve oportunidades”, diz, acrescentando que “a mulher não é inferior ao homem”.
Em relação à homossexualidade, “houve aqui um caminho feito em pelo Papa Francisco: uma coisa são os homossexuais, outra coisa é a homossexualidade. A homossexualidade é algo que está contra a natureza inicial. Deus escolheu homem e mulher para constituir família. Essa é a razão teológica e bíblica. Agora, que haja pessoas homossexuais: qual o problema? A Igreja é de todos, todos, todos, como disse o Papa Francisco. Até há padres homossexuais, mas que vivem a esconder e reprimir a sua sexualidade”, diz, acrescentando que tem na sua comunidade casais homossexuais — “agora até há muitos casais de duas mulheres” — que frequentam a igreja. São pessoas como todas as outras.”
Caminhar com as pessoas “é o melhor da vida”, conclui o padre Sidónio, que não tem dúvidas: “É bom viver, é bom ser feliz. E eu sou feliz”.
Carregue na galeria para ver mais imagens do padre mais antigo em atividade na Amadora.